31.10.06

Crítica: Minha vida mudou em dois dias


O mundo era pó e ao pó voltaria.

John Fante


Depois de anos, o tão falado livro “Pergunte ao Pó” caiu na minha mão. Caiu, não. Eu finalmente encontrei em uma livraria. Li e tudo na minha vida mudou.

Abri o livro, em sua 6ª edição, lançado neste ano pela soberba José Olympio editora, e de cara leio o prefácio assinado pelo mestre Charles Bukowski. As primeiras frases são exatamente assim: “Eu era jovem, passando fome, bêbado e tentando ser escritor. Fazia a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, no centro da cidade, e nada do que eu lia tinha a ver comigo ou com as ruas ou com as pessoas que me cercavam. [...] Então, um dia, puxei um livro e o abri, e lá estava”.

Comecei a ler vorazmente o que Bukowski chamou de “ouro no lixo”. “Pergunte ao pó” não deixa de ser biográfico: fala de Arturo Bandini, alter ego de Fante que sonha em ser escritor. Talvez venha daí o Henry Chinaski do Bukowski. No entanto, Bandini é um alter ego absolutamente complicado e inseguro. Chega a fazer com que seus leitores, como eu, quase percam a compostura. A leitura dá agonia. Bandini sonha. Delira acordado. Olha os lugares e almeja o sucesso e as conseqüências do reconhecimento de ser um escritor famoso. Como ele escreve logo no início do livro:

“Aí um montão de tempo se passou quando parei diante da vitrine de uma tabacaria e fiquei olhando, e o mundo inteiro se apagou exceto aquela vitrine, e fiquei ali e fumei todos os cachimbos e me vi como um grande autor com aquele alinhado italiano de urze-branca e uma bengala desembarcando de um grande carro preto e ela estava lá também, orgulhosa como o diabo de mim, a dama da pele de raposa-prateada. Nos registramos no hotel, tomamos coquetéis e dançamos um pouco, tomamos outro coquetel e recitei alguns versos do sânscrito, e o mundo era tão maravilhoso porque a cada dois minutos uma deslumbrante olhava para mim, o grande autor, e eu não podia deixar de autografar o seu menu, e a garota da raposa-prateada ficava morrendo de ciúmes” (p.13).

Confesso que nas primeiras páginas, minha opinião “sensitiva”, digamos, variava. Eu não sabia se estava gostando ou não do livro. Até que, num determinado momento, Arturo Bandini, que só havia publicado o conto “O cachorrinho riu”, encontra Camilla. Uma garçonete maluquinha e de sapatos velhos. E aí toda a minha concepção de mundo mudou. Fante, através de Arturo Bandini, consegue ferir as pessoas. E fere justamente porque somos iguais. Bandini passa fome, é um cara triste. Não sabe o que quer. Tem medo. Uma prostituta o interpela, ele dá todo o dinheiro dele e vai embora. Não consegue dizer não e pegar o dinheiro. Ou pagar e “aproveitar”. Bandini é inseguro. Sonha com a coragem e o sucesso. E não quase nenhum. Pensa em Camilla e quando a encontra, deixa tudo correr por entre os dedos.

Fante mete o dedo, praticamente o braço inteiro, na ferida: as pessoas, a humanidade, todos são inseguros e brincam de “confiança”. Ter medo de morrer sozinho, de fracassar na profissão, de não alcançar os sonhos, de morrer de uma doença ridícula, de ter que voltar pra casa com o rabo entre as pernas. A civilização corrói. E as pessoas fingem que isso não dói.

No livro, de narrativa informal, porém extremamente direta, com frases longas, mas belissimamente “virguladas”, Fante descarrila crítica social e inquietação. “Pergunte ao pó” mostra uma luta ardente, mas definitivamente indecisa, pela felicidade. Fala de sonhos e de frustrações. Fala de Arturo que ama Camilla que ama Sammy. E deu, senão vou contar o livro inteiro.

John Fante tem uma grande obra: escreveu muitos contos, roteiros de cinema e livros. No Brasil foram publicados: “Dago Red”, “Espere a primavera, Bandini”, “Pergunte ao pó”, “Sonhos de Bunker Hill”, “1933 foi um ano ruim”, “Caminhos de Los Angeles”, “A oeste de Roma” e “Caminhos da juventude”. E agora vai sair um filme sobre o livro.

Aconselho a devorar o livro, porque, pra mim, o mundo caiu em dois dias.

A lindinha da secretária

Francine e Fernando são casados há um ano e dois meses. Continuam se amando muito. Era sábado. Quente. A Fran ficou em casa fazendo uns artigos para o doutorado e o Fernando, como sempre, decidiu passar o tempo no bar, tomando cerveja e jogando sinuca com os amigos.

Saiu de casa às 14 horas. Lá pelas 17 já estava emocionado com as vitórias na sinuca. Resolveu mandar uma mensagem para a Fran, com algum gesto de carinho, tudo para ela não se chatear e deixá-lo jogando mais um pouco. Enquanto era a vez da dupla adversária, Fernando escreveu a seguinte mensagem no celular: “Te amo, lindinha”, e apertou em enviar. Como diziam os cronistas da década de 60, Fernando já estava meio “alto”, e se atrapalhou com as tecnologias do celular. Mandou a mensagem para o primeiro nome da lista. Não era Agenor, nem Ademar, nem Antenor, nem Alcemar, nem Alípio. Era “Adriana”. E não era a Francine. E a Adriana era a sua secretária. Na hora o Fernando viu o equívoco que cometeu. Pensou em ligar para a secretária se desculpando, dizendo que enviou o troço errado. Mas nesse momento chegou a vez dele fazer uma jogada na sinuca, e ele esqueceu de responder. Contou para todos os amigos do bar, e todos riram.

Fernando chegou em casa e disse:

- Bá, Fran, tenho uma coisa pra te contar. Mandei uma mensagem errada. Era pra ti e foi pra Adriana.

- Quá-quá-quá-quá. – Fran não conseguia falar de tanto que ria, quando conseguiu, falou: Mas é uma mala! Há-há-há.

Fernando tirou um peso do peito, afinal achou que levaria umas tamancadas na cabeça. Ficou tudo bem, tomou um banho, fez um “sexus” com a mulher e dali a pouco o telefone tocou. Ele não atendeu. Depois tocou de novo e ele nem viu quem era, estava dormindo. Na terceira vez a Fran disse:

- Vai atender... deve ser alguém importante.

Quando ele chegou no telefone parou de tocar. Meio minuto depois, um “biiiip”. Era o barulho de uma mensagem. Fernando leu e estava escrito: “Seu filho da puta, eu vou te matar! Está passando cantada na minha namorada!”. Enquanto o Fernando lia o recado da mensagem para a Fran, deu outro “biiiip”. Ele olhou e lá estava: “Estou indo te matar na tua casa”.

Fernando, desesperado, ligou para o telefone da mensagem. E o namorado da secretária atendeu. Bravo.

- Alô, aqui é o Fernando. Eu queria pedir desculpas! Foi sem querer, mandei a mensagem errada! Eu tava jogando sinuca e foi pra primeira pessoa da lista “Adriana”. Eu infelizmente não tinha nenhum Ademar, nem Agenor. Era Adriana... Foi sem querer...

- Eu vou te mataaaaaar!

- Meu amigo, foi sem querer. Tu acha que eu ia trair a minha mulher com um ano de casado? Eu amo ela. Ela está aqui.

- Deixa eu falar com ela. – Disse o namorado da secretária.

- Tá.

- Alôaaaaa – disse Fran com sua voz meiga. – Olha, realmente o Fernando mandou errado. Era para mim, mas foi para o primeiro nome da lista “Adriana”, não tinha nenhum Alcemar, Ari, nada! Nos desculpem.

- Olha, moça, se com um ano de casada você já está levando chifre, você se liga.

- Mas moço, não é chifre, é engano....

- Olha, desta vez passa, mas da outra vez eu mato! – E desligou o telefone.

Segunda-feira eu não sei se a Adriana foi trabalhar. O Fernando, na verdade, já queria demiti-la há tempos, porque ela não fazia nada, mas talvez agora ela mesma se demitiu.

P.S – Essa história é verídica. Eu sou madrinha de casamento destes dois patetas. No final do dia, ou melhor, da noite, em meio a umas cervejas, os dois me contavam e riam até ficar uns tomates. E contaram pra festa inteira chorando de rir.

E eu que nunca tinha dado bola pro primeiro nome da minha

Reportagem: “Ele não é um João, ou um José, ou um Artur. Ele é o Adriano”!

Terça-feira, dia 17 de outubro, Passo Fundo. A movimentação começava cedo para o fórum de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. No local, na frente das portas faraônicas da justiça brasileira, uma turma de jornalismo, acompanhada do professor, esperava a abertura do complexo. As ruas da frente estavam com segurança máxima. Uma espécie de carro da Susepe já estava parado na porta do fórum. E Adriano da Silva, o acusado da morte de 08 crianças na região de Passo Fundo, já estava lá dentro, esperando o seu terceiro julgamento.

Neste dia, em que juiz, promotor e defensor público se escondiam em ternos, o calor parecia ser sufocante. Consegui entrar no fórum sem problemas. Sem barreiras, sem nada. Eu e Fabiana Beltrami fomos fazer a cobertura para a Beterraba Filmes e, também, para os Armênios. Às 9 horas da manhã iniciaria o Júri de Adriano pela morte do menino Leonardo Dornelles, o Kiko. Em duas oportunidades anteriores, Adriano já foi julgado e condenado pela morte de dois meninos: Alessandro Silveira, de 13 anos, e Júnior Reis Loureiro, de 10 anos. Para os dois, Adriano da Silva pegou a pena máxima brasileira. No primeiro Júri, realizado no dia 15 de agosto deste ano, pelo assassinato de Alessandro, o acusado foi condenado a 19 anos e seis meses por homicídio duplamente qualificado e um ano e 11 meses por ocultar o cadáver do engraxate, encontrado seis meses depois do crime. E no dia 25 de setembro, Adriano foi condenado a 29 anos de prisão pela morte do menino caigangue Júnior Reis Loureiro, que foi estrangulado. Adriano, no início das acusações, foi incriminado também pela morte de mais quatro meninos, no entanto, estes assassinatos foram desclassificados de suas ações.

Já nos nossos primeiros passos dentro do fórum, eu e a Fabi encontramos o avô do menino Leonardo Dornelles, seu Gideon Dornelles. Seu Gideon, um homem simples, vestido de camiseta e boné vermelhos, fez-me alguns comentários. Disse achar difícil aquela ossada ser do seu neto. Seu Gideon tira de dentro de um caderno uma imagem que me abalou. Eu não esperava ver, daquele jeito, naquela hora, uma ossada límpida, brilhosa, amarelada. Uma ossada que seu Gideon dizia não ser de seu neto. “Uma ossada de 45 dias não é assim”, disse-me ele. O avô do menino estava triste. Ele queria ser testemunha. No entanto, o júri foi proclamado sem nenhuma testemunha. Seu Gideon assistiu a uma parte do júri. Depois não o vi mais.

Enquanto seu Gideon permanecia sentado, com os olhos cheios de lágrimas, aquele olhar fundo e triste, uma espécie de “olhar envelhecido”, fui apresentada a avó de Alessandro, assassinado em 09 de março de 2003, crime pelo qual Adriano já foi julgado. A avó do menino me deu um abraço, dois beijos e já tirou da bolsa a imagem de um menino moreno, cabelo raspadinho e sorridente. “Esse era o meu neto”. Enquanto ela falava comigo, de repente, do nada, a senhora olhou pra lado, gemeu, e tapou os olhos. Ouvi muitos barulhos. Um corre-corre. Virei-me para ver o que era. E lá vinha Adriano da Silva. Cabelo raspado, cavanhaque. Bem acima de seu peso de outros tempos. Quieto, cabeça baixa. Calça jeans e camiseta cinza. Não sei dizer quantos policiais da Brigada Militar o escoltavam. Ele entrou rapidamente por uma porta lateral. Neste momento, a polícia deixou que a imprensa entrasse no salão do júri.

A Fabiana foi instalar a câmera no tripé. E eu sentei e já puxei meu caderno para anotar tudo. Quando olhei pra frente, pra minha surpresa, Adriano já estava sentado, e ninguém, ainda, havia percebido. Assim que os “espectadores” entraram, o júri pelo assassinato de Leonardo Dornelles iniciou.









O acusado

Adriano me impressionou pela calma. Enquanto não o chamaram, ele permaneceu sentado, de cabeça baixa, entre dois membros da Susepe. Quando foi chamado para interrogatório, sentou bem em frente ao Juiz Francisco Sebastião da Rosa Marinho. Questionado pelo escrivão, Adriano começou a falar, com voz baixa e tímida:

- Nome completo!

- Adriano da Silva.

- Profissão!

- Serviços gerais.

- Idade!

- 28.

Adriano seguiu falando o nome dos pais, e sobre as suas raízes no Paraná. Saiu de casa com 23 anos. Tem três irmãos, um deles mais novo do que ele. É acusado por matar Leonardo Dornelles dos Santos por asfixia, no dia 31 de outubro de 2003.

Após os dados questionados pelo escrivão, o juiz, de fisionomia séria, cabelos brancos e óculos pelo nariz diz:

- Eu irei lhe fazer algumas perguntas e o senhor será obrigado a responder e será obrigado a dizer a verdade sobre o que foi perguntado. O senhor tem algum encargo de família? Tem mulher ou filhos?

- Não.

- Nunca teve companheira?

- Já tive, mas nunca fixa.

- Como?

- Já tive, mas fixa nunca.

Adriano seguiu respondendo questões sobre a sua vida e sua família. O juiz continuou, questionando Adriano e, ao mesmo tempo, lendo algumas informações dos Autos do processo:

- O senhor está sendo acusado por dois fatos: O primeiro, no dia 31 de outubro de 2003, por volta de 22 horas, nas margens da entrada do capinzal, em Passo Fundo, Adriano da Silva matou Leonardo Dornelles dos Santos.[...] Adriano encontrou a vítima no estabelecimento New Game, conhecida como sorveteria e fliperama do Jair [...] no bairro Santa Marta [...] onde o senhor aplicou um golpe marcial, asfixiando com as mãos, para que ele perdesse os sentidos, e depois, envolveu uma corda no pescoço da vítima, e pressionou essa corda até matá-lo. Tem mais fatos que eu quero perguntar ao senhor. Mas sobre este aqui, é verdadeiro?

- É falso.

(silêncio) Uma mulher, possivelmente a mãe de Leonardo, vestida de jaqueta cor de rosa, chora.

- Onde o senhor estava neste dia 31 de outubro de 2003?

Adriano segue contando, no seu jeito pacato, que neste dia estava passeando pelo bairro onde morava. Ele residia no Bairro Santa Marta e morava com duas amigas. Ao ser interrogado se havia conhecido Leonardo, Adriano disse que sim, que o havia encontrado no mesmo fliperama. Ele não lembrava direito o dia, nem a hora. Adriano da Silva contou que falou com o menino. Ele teria dito que perdeu o ônibus para ia à igreja onde estavam seus familiares. Adriano argumentou que teria acompanhado o menino até um galpão, perto da casa dele (onde o corpo de Leonardo foi encontrado). E que depois foi embora. A pé.

De supetão, o juiz Sebastião pergunta:

- O senhor não matou esta criança?

- Nãaao! (aquele ‘não’ de uma expressão de impossibilidade! Num tom de quem diz ‘nunca’! ‘jamais’!).

- Há alguma outra criança que o senhor tenha encontrado no fliperama e que o senhor matou?

- Não...

O juiz repete a pergunta, e Adriano nega novamente.

As perguntas continuam e o acusado reitera que não matou o menino. Neste momento o juiz pede se lá em Lagoa Vermelha ele foi obrigado a dizer o que não quis (porque lá Adriano confessou todos os crimes que, nos outros júris, ele negou). Adriano disse que estava sendo ameaçado, e que não pode dizer nomes porque teme represálias contra a família. Falou ainda que em Lagoa Vermelha foi obrigado a dizer o que não quis.

Adriano fica encolhido o tempo inteiro. Não se mexe. Apenas responde o que lhe foi perguntado. Os sete jurados, todos homens - com exceção de dois, todos são de meia idade - escutam atentos o acusado. Só eles têm direito a água e café. Adriano continua dando detalhes de como acompanhou o menino. E, então, a conversa muda de figura:

- O senhor já matou alguma criança?

- Sim.

- Quantas crianças o senhor matou?

- A de Sananduva.

Adriano afirma que matou apenas uma criança na cidade de Sananduva. E, depois disso, falou que encontrou 2 ou 3 crianças mortas em Passo Fundo. Confirmou ter ficado sabendo dos nomes das crianças quando leu pelo jornal. Enquanto Adriano falava, os guardas do acusado conversavam normalmente e até davam risadas, de um papo alheio ao que todos nós estávamos assistindo. Depois das informações sobre os corpos que encontrou, o juiz pede:

- O senhor manteve algum ato sexual com essas crianças mortas?

(silêncio)

- Nada a declarar.

Mais tarde, Adriano diz que o próprio avô de Leonardo disse que não foi ele quem matou o menino. Questionado pelo promotor público, Adriano da Silva também nega ter matado Alessandro e Júnior, crimes pelos quais já foi julgado.

Depois do depoimento de Adriano, que disse muitas outras coisas a mais, o juiz dá uns minutinhos de intervalo.


O promotor

Álvaro Poglia inicia a sua fala às 10h30 minutos. Cada lado tem duas horas para falar. Poglia, após elogiar ininterruptamente Artur Costa, o defensor público de Adriano, inicia a acusação. Enquanto a promotoria fala, a defesa cochicha. Artur Costa faz comentários com uma colega sorridente, professora de Direito da Universidade de Cruz Alta. Nesta hora, e somente nesta hora, Adriano da Silva se recosta no banco e olha para frente.

A promotoria alega que, se Adriano da Silva tivesse sido preso na hora certa, teriam poupado a vida do menino de Sananduva. Poglia passa boa parte de sua argumentação mostrando os Autos do Processo para os jurados. Álvaro Poglia levou calhamaços dos Autos com cópias para TODOS os jurados. E leu. Leu a descrição das mortes e reiterou que o acusado não deveria ser absolvido. O promotor sustentou por duas horas a condenação de Adriano. Enquanto o promotor criticava, o defensor público saiu (talvez para tomar um café). A colega do defensor toma um comprimido, limpa os cantos da boca com os dedos, e faz uma expressão, pela primeira vez, mais séria. O Promotor continua dizendo, com base nos autos do processo, que Adriano se emociona ao falar da mãe e que “sonha direto com as crianças”. De acordo com a leitura, o promotor repetiu o que estava escrito, que Adriano teria afirmado “ouvir vozes” e, também, que “estava viciado em matar”. Num determinado momento, o promotor disse que este crime do Leonardo não tinha prova a não ser a confissão do réu, ao passo que o promotor público intrometeu-se na fala e disse:

- E se ele não confessar não tem nenhuma!


O defensor

Artur Costa é um homem seguro de si. Terno azul marinho, sapato lustroso e um sorriso de canto a canto da boca. Conversou com jornalistas e com as pessoas que assistiam ao júri. Costa interrompeu uma vez o juiz e uma vez o promotor. À tarde, à partir de 13h58 minutos, ele iniciou a sua fala, que iria durar 2 horas, se não fosse a queda de pressão de um dos jurados.

Costa é um “artista do direito”. Conseguiu manter a atenção de todas as pessoas que ainda assistiam ao júri. Ele disse estar defendendo Adriano porque ele acreditava na Constituição de que todo mundo tem direito a defesa. Costa falou dos custos de manter um defensor público, dirigiu-se aos estudantes de jornalismo que estavam assistindo, decorou os nomes dos jurados e os intimava no meio de seu discurso.

Artur Costa ia de um lado para o outro do plenário. Preenchia o lugar e caminhava por todos os lados. A esta altura eu estava no “comando da câmera” da Beterraba Filmes. E minha inexperiência não me deixava fazer um close em Costa, tamanha era a sua desenvoltura.

O defensor público oscilava entre falas entusiasmadas e sussurros. Era bonachão, homenageava colegas e amigas e falava dos problemas sociais brasileiros.

- Quem tá sentado ali é o Adriano. Se vocês julgassem, pensando que é um homem que tá ali, só! Seriam obrigados a absolver.[...] Se já no primeiro júri tivesse sentado ali um João, um José, um Artur que seja, [...] e não um Adriano, que os senhores já condenaram, que a população já condenou...[...] como é que vocês vão chegar em casa e as suas mulheres vão dizer: “você absolveu um monstro”!!! Monstro, chacal, verme! [...] Os amigos vão lhe cobrar “por que você absolveu”?[...] Todo mundo já sabe que ele vai ser condenado! Ele já sabe que vai ser condenado! (gritando). Eu tenho tesão pra vir trabalhar? Por que? Porque ninguém vai colocar a cara exposta. Ou como diria o Chico Buarque, “ninguém deixa a bunda na janela pra todos tocarem a mão nela”.

No alto dos 44 minutos de fala, Costa teve sua apresentação interrompida, pra lástima de muitos. Um dos jurados, um senhor que aparentava 60 e poucos anos, sentiu-se mal. Artur parou de falar e quis ajudar o jurado. O juiz Sebastião parou o tempo em que corria o juri. Foi chamada a Samur e o jurado não tinha mais condições de prosseguir.


O fim

Todos os jurados se retiraram e o juiz deu um intervalo. Cinco ou dez minutos depois todos os jurados voltaram, com exceção do homem que passou mal. Então, Francisco Sebastião da Rosa Marinho disse não poder colocar em risco a saúde de um jurado. Disse que o júri estava destituído e que um novo teria que ser marcado, com novos jurados e todos os procedimentos realizados novamente. Este não valeu nada. “Estamos dissolvendo o conselho e informo aos senhores que nós vamos realizar um novo julgamento [...], que começará tudo de novo [...]. Esse serviço que foi feito até esse momento deverá ser esquecido e recomeçado do zero. Vamos ter que sortear um novo conselho de sentença e inclusive não poderão fazer parte as pessoas que instituíram o atual conselho”.

Enquanto as pessoas saiam, Adriano foi levado calmamente a uma salinha. Deu entrevista coletiva e em nenhum momento mudou a sua expressão de calma e certeza. Ele volta a Passo Fundo no dia 14 de novembro, para o julgamento de Luciano Rodrigues.

Repeteco again: A morte dos pássaros

No começo todo mundo pensou que fosse uma peste. As donas-de-casa se extenuavam de tanto varrer pássaros mortos, sobretudo na hora da sesta, e os homens os jogavam no rio às carradas.

Gabriel García Márquez

Boa parcela daqueles que lêem mais de dois livros por ano no Brasil têm uma triste falha: eles estão acostumados a apenas um modelo de leitura.

Nosso leitor, que aqui não está diferenciado por leitor de primeiro, segundo ou terceiro mundo, está viciado no modelo que lhe treinaram: o realista padrão. O realista técnico. Ele está preso a uma literatura e/ou jornalismo de convenções, ao estilo que constrói, apenas e essencialmente, os modos informativos (como responder o Que? Quem? Quando? Como? e Por que?) e também aos meios de compreensões descritivas (como coisas relacionadas a textos de história, antropologia e economia, escritos naqueles tijolões que ninguém consegue ler sem ficar de mau-humor.). Com este texto não quero criar discrepâncias com estas áreas, mas sim com seus modelos.

O realismo é a maneira mais fantástica de escrever algo. É a realidade que move a cena que, através do livro, se tornará imortal. Pode ser um imortal de gelar a alma, como qualquer coisa escrita pelo (meu) mestre Bukowski. Ou pode, também, ser um imortal ridículo, como os amores de todos os livros da Danielle Steel. O realismo, hoje, mortal e imortal, é o meio mais sensacional de ficção que se tem. No entanto, o realismo padronizado, “tecnicado”, perde toda a sua genialidade.

O realismo dos escritores, dos jornalistas, dos advogados, dos médicos, dos próprios leitores, muitas vezes, é reprimido. Amordaçado por técnicas. Palavras prontas. Os jornais, as revistas, e até, porquê não, as “compreensões descritivas”, deveriam trazer o realismo calçado na criatividade, na imaginação, na fantasia, aquele que mistura os exemplos humanos, o real, com o irreal. O que é normal e o anormal. O possível e o impossível. O leitor precisa ir além daquilo que foi dito. Ele precisa encontrar uma obra que provoque nele um estranhamento. Basta de ler o já lido, como diria Jameson. Already-read, déja-vú. O leitor precisa ir além. Como ir além??? Incitando o leitor, deixando dispositivos para que ele possa ir além, apenas acompanhado do livro, ou do jornal, ou da revista. Como fazer isso numa reportagem?? Leia Fernando Morais e Zuenir Ventura. Como fazer isso na literatura?? Leia “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez; o conto “A terceira margem do rio”, do livro Primeiras Estórias de Guimarães Rosa. Além de citar, evidentemente, como autores que fazem o leitor ir além, o mestre Bukowski, Hunter Thompson e Daltro Trevisan. Aqui misturando todas as grandes e geniais farinhas no mesmo saco.

Tudo tem realismo. Mas este, de tão importante, não pode vir sozinho; daí a importância da “realidade” criativa e, também, fantástica, ou, apenas, da humanização e do mágico dos fatos pelos fatos. Os textos precisam misturar o tesão da leitura, da história, do fabuloso e do fantástico, ao circunstancial. Os leitores foram treinados culturalmente para gostar de uma coisa que nem sempre é o que eles gostam.

Repeteco: Bigode Elétrico - a banda

Era uma vez uma gata que se chamava Lisa. Ela era branquinha, com alguns pretinhos espalhados pelo pêlo. Cinza. Classe. Olhos azuis. Negros na noite. Um certo dia...

- Eu tinha sete meses. Desde pequeninha odiei três pessoas na minha vida: O Lasier Martins, o Jô Soares e o Faustão. Também acho o Jornal Nacional ridículo. Então, por estar “estressada com a mídia”, resolvi passear do lado de fora da janela de casa.

Lisa, com seu super plano, saiu de fininho da sala, onde duas criaturas permaneciam babando na frente da televisão. Saiu de leve, como quem sai pra matar um rango. De repente, passou pela cozinha (viu que tudo estava calmo – e fechado) e rumou para o quarto. Entrou. Sorrateiramente. Não resistiu e espichou a patinha para empurrar a bolinha de papel. Correu um pouquinho atrás da bolinha e cansou.

- Essa vida de gata sem útero é foda. Engorda pra caralho. Pelo menos fico gostosa.

Depois de ignorar com hierarquia a minimalista bolinha, ela rumou para o seu bote. Subiu na cama, pulou para a janela e enfiou a cabeça para fora. Olhou para um lado. Nada. Olhou para outro. Livre. Botou o corpo para fora:

- É agora!

E saiu. Foi desfilar no parapeito (do lado de fora) da janela. Passeou até o fim. Desfilando. Os vizinhos apavorados. As donas, ainda, na sala. Agora não babavam mais na tv, mas na Internet.

- Tã nã nã, tã nã!!! Lisa contra a baixo astral!!! Enganando os trouxas do planeta!!

(Nota: Lisa também atende pelo codinome “

Lisete Müller”, Lisetão, Lisão e meigamente Lisinha).

Lisete pendurou-se no parapeito, foi até o finzinho, virou-se, dando uma bela abanada com o rabo, a muitos metros de distância do chão. E retornou ao ponto de saída. Entrou. Foi até a cozinha. Comeu fazendo rãrãrãrã... ou ronronando para os sem imaginação.

Deu meia volta e subiu em cima da mesa. Pulou para a pia. Tomou água da pia.

- Não tem nada melhor que tomar água da pia. Parece água da chuva, ou cachoeira, dependendo da sua viagem. Mas é bom. Água nova. Não é aquela que deixam mofando no nosso potinho.

Depois de saborear uma água, Lisão, outra variável de seu nome, pulou para o fogão, lambeu um restinho de comida e deu um super-extra-master pulo. Chegou até o canto final da geladeira. Para chegar até a frente, seus 2,5 quilos atrapalharam um pouco. Derrubou um remédio, uma maçã e um copinho de plástico que estavam em cima da geladeira. Parou bem em cima da porta. Quando uma das donas foi até a geladeira buscar um bolo...

- Lisa, eu não acredito! Como tá fazendo isso??? Já não te expliquei??? Hein, Lisa! Vem aqui!

A dona pega Lisetão e coloca no chão. Dá uma encostada na bunda, simulando uma palmada!

- Não é mais pra fazer isso! Já falei!

Lisa dá de ombros, vai perto da bolinha, e espicha a patinha para chutá-la.

* * *


Enquanto a dona da gata voltou para a sala ler o Hollywood do Bukowski, Lisão foi até o quarto e pegou um celular. Resolveu ligar para os seus amigos gatos.

- Alô, Heloísa Helena, blz? Tranqüilo. O ensaio pode ser hoje aqui em casa, né??

- Deixa eu ver o que a Mafalda acha. Só um pouco. (Heloísa Helena cochicha com sua irmã Mafalda. As duas são gatas amigonas da Lisa). – Lisão??? Pode ser. Falou com a Nico, o Iggy, a Maria e o Demian??? (esses outros gatos também são amigos delas).

- Não, liga você...

- Tô sem crédito.

- Ai, que saliência... Eu ligo. Falou então. Até às 20 horas.

Lisa ligou para o Demian (que estava dormindo, pra variar) e foi na janela assobiar para a Nico e seus “Velvets”.

- Miaaaaaau!

(Nico coloca a cabeça pra fora e bate um papo).

- Dae. Vamos ensaiar??

- Era isso que eu queria falar. Avisa a galera. Às 20h aqui em casa.

(ao fundo Lisa escuta um solo do Iggy). Lisa pergunta:

- Ele ainda tá cantando assim?

- Aham. Não tem jeito, né.

- Não, esse Iggy não.

Nesse momento, a Maria, a outra gata, quebra um copo quase na cabeça do Iggão, o gato simpático.

Enquanto o tempo passa, lisa vai para a sala, encosta a cabeça nos pés da dona e faz um auto-carinho. Depois dorme na cadeira do computador. Mais tarde, acorda com o interfone. Não é a sua galera. Ao contrário. Eram “terceiros”, os amigos da dona. Eles entram, fazem uma zona, fumam, deixam a casa fedendo, falam alto, derrubam coca no chão, enfim, são salientes.

A brincadeira da hora da Lisa era acompanhar quem ia ao banheiro. Ela entrava junto e ia para a pia. Pedia água. Tomava até ter soluço e molhava todos os pelinhos da cara. A pessoa saia e ela ia deitar no carpete. Depois variava, ia deleitar-se com a galera.

- Vou lá incomodar o Guines... meu amigo. Ele não é gato. É uma pessoa de verdade. Ele adora brincar violentamente comigo. Sempre quer enfiar a mão embaixo do meu queixo. E eu não deixo (até rimou. Vou ser poeta. Hai-cai.). Quer dizer, tento brincar com o Guines. Quase sempre perco. Daí eu saio, dou uma volta e começo a brincadeira de novo.

Nisso tá o Guines e a Lisa no maior entreveiro (para citar uma palavra em homenagem ao Ataliba, amigão da Lisa e que também não é gato).

Toca o interfone gatístico. A Lisa atende e ninguém (da espécie “gente”) ouve. Eram os seus amigos. Na verdade, a formação original da banda “Bigode Elétrico”. Som rockão. A Lisa na bateria, o Demian nos teclados, a Mafalda na guitarra solo, a Heloísa Helena na guitarra base, Maria no baixo, e a Nico e o Iggy no vocal. Grande “Bigode Elétrico”.

A música atual ensaiada é I wanna be sedated, dos Ramones. Tem até um clipe. A Lisa batendo, a Mafalda fazendo um puta som e o vocal matando a pau: “Twenty-twenty-twenty four hours to go I wanna be sedated/ Nothin' to do and no where to go-o-oh I wanna be sedated”! Pá rá rá rá. Sonzaço.

Depois de tocarem I wanna be sedated rolou Taxman, dos Beatles, o preferido da galera, e Sweet Jane, dos Velvet Underground. Tudo bem, essa é clássica de qualquer banda. Não faltaria na “Bigode Elétrico”.

E no mais é isso. O ensaio da banda rendeu uivos na vizinhança, 3 copos quebrados, o “incensário” no chão, com todas as cinzas, goles de coca-cola grudando no carpete do apartamento e pelos voando pela casa.

Após despedir-se dos seus amigos, Lisa foi comer e dar uma cagada. O jornal que ficava embaixo da caixinha de areia era o Zero Hora, cuja notícia impressa assim se apresentava: “LEI ANTIFUMO É CONFUSA ATÉ PARA QUEM A VOTOU”. Depois deitou-se no sofá e ficou se lambendo. Aí dormiu recebendo carinho e fazendo rã rã rã.

Saliência tem hora e vez

Olá.
A partir de hoje inicio este blog informal, trazendo textos sem padões, crônicas e reportagens absolutamente fora do que você está acostumado a ler nos jornais usuais.
Espero que goste.
Alêêêê.