28.4.07

"Não perca tempo com essa grossura, com esses bombachudos, com essa bagualice!"

Uma entrevista de 80 minutos. Três dias de transcrição de áudio com fala arrastada e músicas de jazz ao fundo. Edição. Aliás, pouquíssima edição.

O que você está pra ler é um entrevistão, resultado de uma conversa “afiada” e franca realizada com o autor de mais de 38 obras sobre a história do Rio Grande do Sul e suas fronteiras. Quem libera o verbo é o professor universitário, jornalista e doutor em História, Luiz Carlos Golin, o Tau.

Abaixo, Tau Golin fala do Manifesto contra o tradicionalismo, que ele escreveu juntamente com um grupo de jornalistas, historiadores, músicos e simpatizantes à causa avessa do Tradicionalismo gaúcho. Conta como virou historiador, fala de sua estada no Grêmio Football Porto-alegrense como centro-médio e opina sobre a “academia” e as universidades.

Entrevistei o historiador e jornalista acompanhada do professor Cleber Nelson Dalbosco, que fotografou o encontro, e também do jornalista Jean Berthier, que foi presentear o professor com a significância singular dos pinhões que crescem e se esparramam ao chão de sua propriedade.

Agora se imagine numa tarde de terça-feira chuvosa, num apartamento no centro de Passo Fundo. Onde estamos há uma sala repleta de livros até o teto. A pintura das quatro paredes são obras de todos os tipos: literárias, de história, de pesquisa, de metodologia e, também, de navegação. Num canto, uma mesa com dois computadores. Um deles sintonizado na rádio Sanborns Radio Jazz, que, bem baixinho, fez a trilha sonora da nossa conversa. Em frente à mesa, dois sofás e uma cadeira. Num sofá de poltrona única, que podemos chamar de “divã”, está Tau Golin.

Tau, de onde surgiu a idéia do Manifesto contra o Movimento Tradicionalista Gaúcho que já circula na Internet?
O Manifesto surgiu com a intenção de dar uma resposta mais articulada, de um ponto de vista republicano, a uma série de medidas e ações concretas que o MTG e os tradicionalistas tomam no cotidiano da vida social, não é?! Então a partir dessa intenção nós reunimos uma série de críticas esparsas de acadêmicos, de professores de história, de repórteres, de jornalistas, de músicos – que são as maiores vítimas do MTG,...né?, de professores que são inibidos na sua atividade de trabalho, por uma ação militante das secretarias e dos secretários de educação e turismo que invadiram as escolas para idiotizar as crianças através de um processo de pilchamento mental. Então reunido todo esse material e estes argumentos que estão em livros, em artigos, em opiniões, em entrevistas nos jornais, etc, nós pegamos todos estes elementos e demos um corpo pra ele; através de uma redação que unificasse essa série de opiniões que existem e, mostrar opiniões que aparecem como uma preocupação do ponto de vista da formação intelectual do Rio Grande do Sul, e o que isso significa do ponto de vista daquilo que nós chamamos de um “caldo de cultura” fundamentalista que não propicia a formação de uma coletividade que tenha uma mentalidade aberta, ilustrada, anti-dogmática.

Hoje o MTG é uma força com uma visão de passado, com uma ação cotidiana jamais vista – a não ser nos processos de nazi-fascismo - e com bandeiras de futuro, que inclusive não só ficam na esfera clubístico do lazer, mas acham que eles têm uma proposta ideológica de transformação da sociedade. Isso se expressa em várias operações que eles fazem com uma legião de militantes nas estruturas sociais. Ocuparam o Estado, privatizaram grande parte do Estado, especialmente as áreas de educação e turismo; ocuparam os meios de comunicação – eles mesmos um produto da indústria cultural – e nas suas últimas investidas a coisa começou a ficar muito mais assustadora, porque não só desejam ter uma influência dentro dos educandários, mas já projetam ter as próprias escolas no Ensino Fundamental e Médio e Universidades tradicionalistas, ... não é!? Todo esse conjunto de coisas demonstra que nós temos uma ação militante concreta no cotidiano do Rio Grande do Sul e em outros estados da Federação. Isso já ultrapassou de muito aquelas preocupações digamos bucólicas, telúricas, de ter unicamente um sentimento com as coisas do Rio Grande. O que nós temos hoje é uma operação militante ideológica que opera com o desejo de ter uma influência política e comportamental na sociedade.

Já chegou até você alguma repercussão do Manifesto, seja ela positiva ou não?
Até agora não surgiu nada articulado. O Manifesto é muito claro. É um texto cuja preocupação maior é chamar a atenção da cidadania com um ponto de vista crítico do que isso representa. Mas do MTG como um todo, quando as coisas chegam num patamar – não precisa nem ser intelectualizado, mas um pouquinho mais culto - começam rarear os seus porta-vozes. Certamente o Manifesto está sendo analisado por seus ideólogos. O que se tem visto são aquelas coisas chulas, bagaceiras, escatológicas, ofensivas – que é tipo dessa cultura, porque essa é uma cultura da violência, uma cultura do deboche, uma cultura da rusticidade, do abagualamento, da vulgaridade. Mas o Manifesto tem provocado também respostas sinceras de tradicionalistas. Porque o grande problema que existe no Rio Grande do Sul são aquelas pessoas - que são milhares delas -, que têm um sentimento lúdico de pertencimento sincero ao Rio Grande do Sul e que expressam isto no seu cotidiano. Não precisa identidade pra sentir e expressar isso. Mas esse sentimento acaba sendo cooptado, arregimentado por uma instituição da sociedade civil como o MTG, que estabelece uma normatização dos comportamentos. Então nem sempre a fronteira entre o que são sentimentos de pertença e o que é uma militância ideológica e MTGista está clara, está bem definida. É um monte de confusão nesse meio. Se usa bombacha logo é um tradicionalista, o que é um equívoco, se é gaúcho é tradicionalista, é outro equívoco. O MTG conseguiu uma operação muito concreta de se colocar como mediador entre um sentimento e a representação e a identidade. É uma coisa jamais vista. Mas na verdade isso é tudo muito confuso, e textos como o Manifesto são textos que acendem uma lamparina, um certo lampiãozinho da ilustração, dizendo em suma que não tem nenhum problema, que as pessoas continuem cantando milonga, dançando vaneirão, andando pilchado, usando bombacha... o problema é quando tudo isso entra numa lógica normatizadora e que alguém está com a rédea na mão dando um sentido cívico e ideológico. E alguns se colocam como porta-voz e como ideólogos de um determinado movimento.

Logo nas primeiras linhas do Manifesto está escrito: “Só é legítima a cultura que representar esta diversidade (referindo-se a diversidade cultural)”. O que você acha legítimo no Rio Grande do Sul?
A cultura legítima no Rio Grande do Sul parte de dois paradigmas. No primeiro lugar é ter um respeito pelos vários outros que construíram e constroem o Rio Grande do Sul. Ou seja, todas as etnias que formam o Rio Grande do Sul... e as várias mestiçagens, dependendo das regiões, são legítimas e devem estar no mesmo nível, no mesmo horizonte de representação. O MTG não acredita nisso. O MTG diz que o gauchesco é o identitário, está no topo da pirâmide e todo o resto pode ser aceito desde que esteja nesta lógica. A carta de princípios do MTG é clara: o MTG tem na sua carta de princípios a missão principal que é “pilchar o Rio Grande do Sul”, ou seja, “agauchar o Rio Grande do Sul”. Mas não é “agauchar” no sentido de um gauchismo histórico, é, na verdade, tradicionalizar, no sentido de transformar o MTG; que a população do Rio Grande do Sul acredite que o MTG é o arquétipo, é o tipo identitário, e todo o resto deve ser a imagem e semelhança do MTG e do que ele diz. Então além da legitimidade das etnias, nós temos a legitimidade da criação (o outro paradigma). Todos os grupos, os segmentos sociais, precisam ter o mesmo direito à visibilidade; e mais que isso: todos os grupos sociais, os indivíduos, têm que se inventar e se reinventar no seu tempo. E isso faz parte do processo da história, se refazer permanentemente. O MTG não acredita. Pra ele há um arquétipo que é inventado a partir da década de 40, que foi sendo especializado com o passar do tempo, e tudo deve derivar disso. O MTG não é uma questão da história. O MTG é uma usurpação e uma fraude, porque ele é uma invenção, ele se auto-inventou, evidentemente como um produto da indústria cultural. Só que ele quer se legitimar como se ele tivesse uma origem histórica, com base no mundo real do passado. Sendo que o Rio Grande do Sul nunca teve uma etnia básica, a própria idéia de gaúcho é uma idéia de mestiço, e é um Estado multicultural e multiracial.

Então esses dois pressupostos são os legítimos para lidar com a arte e a cultura no Rio Grande do Sul. É óbvio que quando você tem doutrinas e práticas políticas, com dirigismo dentro dos educandários, como tema o Rio Grande do sul, fundamentalmente em Passo Fundo, em que o MTG e os tradicionalistas invadiram as escolas, o princípio Republicano de educação está sendo usurpado! Mas pra isso funcionar como tem funcionado, é preciso fazer esta grande campanha como o MTG faz... e a idiotia completa dos meios de comunicação, que alimentam isso, de que a identidade do Rio Grande do Sul é o orgulho gaúcho! Isso é uma banalidade da complexidade histórica do Rio Grande do Sul e principalmente da complexidade cultural! O Rio Grande do Sul é muito mais complexo, muito mais interessante, historicamente muito mais criativo, humanamente inventivo do que os manuais do MTG e essas cartilhas que estão chegando nas escolas para o público.

Tem mais um trecho do Manifesto contra o MTG que diz assim: “Somos, em razão disso, contra todas as forças que dogmatizam, embretam, engessam, imobilizam a cultura e o saber em expressões canonizadas em um espaço simbólico de revigoramento e opressão a partir de um ‘mito fundante’”. Quem mais, além do MTG, que você cita, faz isso no Brasil?
O MTG se expandiu através de um desterramento dessa grande migração de gaúchos. O que é curioso nisso tudo - pra ver como isso é apenas uma doutrina - e todas as doutrinas fora da história são muito perigosas, porque elas acabam no fundamentalismo; a maioria dessas pessoas que se apresentam como gaúchos, esses falsos gaúchos, que na verdade assumiram uma figura tradicionalista nos outros estados, eles sequer no Rio Grande do Sul tinham uma vida campeira, uma vida a la gaúcha, e a sua grande parte sequer freqüentava CTG aqui. Mas quando eles saem, como uma forma de arrotar grosso, de se comportar através de uma forma arrogante, de não conviver com as outras culturas locais pra onde vão, pra não respeitar o folclore, o modo de vida local, mas sim para aparecer como um aculturador, típico da fronteira agrícola. Na maioria das vezes, eles se travestem fora do Rio Grande do Sul como os tradicionalistas. Sendo que no passado, muitos deles sequer viveram no Rio Grande do Sul! Então eles se adaptaram, aprenderam através de uma educação CTGista, com a liturgia e os rituais do CTG, e se apresentam fora do Rio Grande do Sul, aonde eles vão morar e produzir, com essa identidade.

Essa expansão tradicionalista cometeu e comete muitos crimes culturais Brasil afora, porque em primeiro lugar essas legiões que foram à frente, os pioneiros, ou às vezes nem é frente pioneira - nós podemos pegar no leste de Santa Catarina, no litoral, a própria ilha de santa Catarina, comunidades com culturas seculares, dos açorianos, por exemplo -, ali chegam os rio-grandenses metidos a gaúchos, com poder econômico, se reúnem em 4, 5, fazem um CTG, fincam um galpão rústico dentro de uma arquitetura que é milenar, levam essas festas da indústria cultural e alteram completamente a arquitetura, o modo de vida e as festas locais. Além de tudo essa é uma cultura que tem uma densidade desrespeitosa com a diferença. Não consegue viver a diferença, e o mais incrível, quanto mais se afasta da fronteira, mais pacholento é o tradicionalismo... não é?!, mais fulgurante, mais de ribalta, mais artificial, porque quando não se tem os limites dados pelo real a liberdade é completa. Então você vê coisas que não têm mais nada a ver uma mínima âncora com os tipos concretos. É por isso que o homem real de fronteira, o homem que anda à cavalo, o homem que tem aquela postura taciturna, respeitosa, calma, interiorana, ele olha o movimento do tradicionalista e pensa que é uma ofensa. Às vezes ele não consegue verbalizar isso, porque ele não é um intelectual, mas ele sente que é uma artificialização, quando não uma carnavalização do ser rio grandense real; que é uma distinção completa do seu cotidiano, do seu modo de vida e é essa coisa de palco, de salão, de elite que é o tradicionalismo.

Como um historiador, qual, na sua opinião, foi a maior “mentira” já contada na “história” ou nos “livros de história”?
O tradicionalismo escreve e justifica por outro lado o seu calendário de eventos. Ou seja, todo fundamentalismo, e o tradicionalismo - por isso que o fundamentalismo às vezes se encontra bem com a indústria cultural, não é?! -, eles são atividades de eventos, a história entra apenas como uma justificativa do evento. E nisso muitas mentiras são construídas. Possivelmente, e de onde deriva o próprio orgulho tradicionalista, que é a Revolução Farroupilha, seja a maior mentira! Em cima da Revolução Farroupilha, que é um ritual cotidiano, e uma grande festa, no sentido gauchesco, em setembro, é uma alimentação da mentira. Qual é a primeira delas? É dito que durante 10 anos o Rio Grande do Sul se levantou contra o Império. Isso é uma mentira. Os Farrapos eram a minoria e nunca chegaram a 5%. O que ocorreu na verdade é que a maioria do Rio Grande do Sul ficou contra os farrapos. E a Revolução Farroupilha foi, antes de tudo, uma guerra civil. Estancieiros – que eram a favor do império – formaram a sua milícia, o seu exército, e combateram aqueles outros estancieiros que estavam fazendo uma reivindicação armada, que chegaram ao separatismo. E mesmo quando o Netto proclamou a República Rio-grandense, a maioria dos Farrapos eram contra a separação, usaram isso apenas como moeda de barganha, porque eles não eram Republicanos. E essa é outra mentira. Que tem origem no movimento Republicano do século 19, quando os Republicanos Positivistas, na sua maioria, se legitimaram, dizendo que já existia no Rio Grande do Sul, no passado, um movimento Republicano em que esse movimento vinha dos Farrapos. Então quer dizer, o nome República Rio-grandense não significa que os líderes Farroupilhas fossem Republicanos, até porque todos eles eram senhores de escravos. Qual é o problema sério que nós ficamos hoje no Rio Grande do Sul? É que essa gente constituiu um panteão de heróis que hoje, uma população, vivendo no século 21, cultua como seus heróis senhores de escravos!!! Bento Gonçalves, Canabarro, todos esses! Todos eram senhores de escravos! Então nós temos um problema sério! E é esse limite que vai ter uma influência na formação cultural, sensitiva, política das crianças, dos estudantes e da própria população, que fica fazendo parada, festa, que morre pela cultura gaúcha, que na verdade tem toda ela um conteúdo escravagista. Logo nós ainda não fizemos no Rio Grande do Sul, mentalmente, a Revolução Francesa! Essa é a Revolução Farroupilha, que é a base da sustentação de legitimidade do MTG, e que sofreu uma versão completamente mentirosa! Nós temos dezenas de livros escritos no Rio Grande do Sul, nos últimos 30 anos, obras excelentes, (publicadas)das universidades, só que o negócio chegou a um estágio de demência, porque quando chega em setembro... aliás, historiador fala muito pouco na mídia do Rio Grande do Sul. Porque quem fala é patrão de CTG, com qual legitimidade eu não sei! Mas os meios de comunicação, quando têm que buscar fontes pra falar de história, geralmente ouve patrão de CTG. A mesma coisa que quando faz previsão de ano pra ano entrevista a vidente. É a mesma consistência, digamos assim, no método comunicativo que nós temos no Rio Grande do Sul. Normalmente, essa educação e essa cultura de mídia dogmática, desde que se nasce no Rio Grande do Sul vai se fazendo essa grande lavagem cerebral nas pessoas, que quando elas começam a chegar na maioridade intelectual, quando começam a ler outras coisas, entrar em contato com fontes acadêmicas e historiadores sérios, elas começam a entrar numa paranóia! Porque elas “achavam” que tinham valores baseados em exemplos do passado, que quando elas começam ter as fontes comprovatórias do passado, elas começam a perceber que a sua identidade não tem consistência histórica! É, na verdade, uma grande teatralidade contemporânea, que vai desde uma formação educacional e sustentada cotidianamente por uma cultura, por uma mídia, por uma música, por um calendário de eventos que estabelece uma liturgia em que as pessoas são dogmaticamente lembradas, testadas e desafiadas a serem a sua identidade. Já existe um grande espelho com um retrato fixo na frente das pessoas: “Essa é a sua identidade, você precisa se adequar a ela”! E a imagem não é a da pessoa, mas você tem que ser igual a imagem que é fixa no espelho!

Jean – O Tradicionalismo, que teve seu alavancamento a partir da década de 40, não seria uma xenofobia no plural, que acabou diluindo certas contestações que poderiam surgir depois, a respeito da história do Rio Grande do Sul?
É também. O Tradicionalismo tem elementos xenófobos e se alimenta disso. Mas o que tem de mais curioso nisso é que é uma valentia e um orgulho inócuo e sem sentido. Que não presta pra nada! Ele não opera, não é..., cotidianamente numa transformação positiva das sociedade. São homens e mulheres que se dizem embriosos, pessoas que estão sempre em guerra. Com uma audição de uma hora de um programa de rádio gauchesco morre mais do que em bang-bang e filme policial americano, porque é pontaço de adaga, de lança, de tiro de trabuco... o que se mata de castelhano... já limparam os castelhanos da face da terra... mulher tem mais que pastel em cancha de carreira (risos)... quer dizer, isso é uma coisa de um sentido... ele tem tanto esbanjamento simbólico, que por isso mesmo ele é vazio! É vazio no cotidiano, mas termina sendo um elemento escapista fantástico, porque o reino da necessidade das pessoas... é assim, como é que elas fogem do reino da necessidade? Para o reino simbólico! Então o tempo livre das pessoas não é um tempo para adquirir cultura e conhecer o seu tempo. O tradicionalismo é uma forma de fugir de seu tempo! De ir para um século 18 e um passado muito vago, onde você é caudilho, você monta à cavalo, quando precisa de mulher passa a mão numa e bota na garupa, usa um tempo depois larga de novo... vive chorando as mágoas das mulheres perdidas num buchincho... então são caricaturas sobrepostas à caricaturas que ocupam de tal forma o cotidiano das pessoas – porque elas vivem isso! – Elas suportam o seu reino da necessidade e do trabalho, saem do banco e vão para esse mundo hipotético. Trabalha em obra, no comércio e vai para esse mundo hipotético. O seu tempo livre, o tempo de reflexão, nunca é um tempo voltado para o seu cotidiano completo. Então se é um pressuposto interessante que o tempo livre das pessoas, o chamado reino da liberdade, no sentido de se pensar no seu tempo e para esse tempo é construído uma completa ilusão, as pessoas notadamente estão fora de seu tempo! Só que isso de um ponto de vista de compreensão de seu tempo. Mas quando um movimento como o Tradicionalismo se tornou em algo militante e profissional... quer dizer, hoje há uma culinária, uma indústria têxtil, uma indústria de festival, uma mídia, uma indústria de rodeios que se alimenta disso! Ou seja, isso começa a operar concretamente na vida! E você começa a perceber em sala de aula os efeitos culturais e intelectuais disso. Assim quando um devoto abre a boca e você já sabe qual o seu imaginário e a sua fé, quando um tradicionalista começa a falar, pela sua dureza de pensamento, pelo seu dogmatismo, pelo seus únicos paradigmas “eu sou tradicionalista e o resto é o resto”, você já percebe de cara. Numa análise mais profunda eu diria que o tradicionalismo acabou se constituindo numa força cultural de efeito no cotidiano que formou um lastro de uma incapacidade de ler o mundo! A isso que a gente chama “ausência de ilustração” substituída por um fundamentalismo! Quer dizer: a vida é uma repetição e não uma construção cotidiana. É um projeto fundamentalista nesse sentido!

Cleber- A gente olha, por exemplo, para essa cultura de dogmatismo, sendo transposta aqui no Rio Grande do sul para outras esferas de produção de indústria cultural. Por exemplo o Rock. Encontra-se gente que idealiza a década de 60, 70, que são aqueles movimentos, e aí cria um certo clubinho que pode virar um MTG Rock... às vezes eu penso nisso. E nada de chegar a um elemento externo, ou seja, o cara gostar de baião já não é bem visto e excluído. Isso seria uma certa herança simbólica?
As crenças estabelecem dogmas e têm coisas comuns, independente se o cara vai fundar o talibã ou fundar um grupo cultural. É um esforço ideológico de criar os fundamentos, quase sempre uma articulação que tem um corpo, mas as formas de operação de todo o grupo dogmático é o mesmo. Os paradigmas são os mesmos. Se você pegar um grupo que o seu dogmatismo é uma determinada fé, e o outro o seu dogmatismo é uma determinada crença política, a operação no cotidiano, de legitimação, de reconhecimento do outro, fundamentalmente a gente tem que observar que os processos de reconhecimento são fundamentais. Quem vai atendendo as normas vai sendo recompensado. Se tu escrever determinada coisa que está de acordo com as normas, passa a circular naquele determinado meio. Se você cantar igualmente, se você... então há todo um mecanismo de funcionamento... ele (o MTG) tem muitos reconhecimentos pra ir legitimando pessoas e fazendo a reprodução! São concursos internos, um festival com jurados que vão sacramentar a coisa ou não. Você pode observar que a grande energia do MTG é construída em disputas internas. Pra escolher as primeiras-prendas de todas as categorias, os peões, é sempre uma disputa e guerra interna, em que tem que estudar a cartilha do MTG, e estudar quer dizer “reproduzir” o que está ali, as indumentárias, os regramentos das músicas... é tudo normatizado e será reconhecido e premiado aquele que fizer melhor aquela determinada repetição. Os dogmatismos, principalmente os culturais, têm um dinamismo muito grande na sua criação! Se a gente pensar em toda a construção do nazi-facismo, a dinâmica interna de funcionamento, de instâncias, de reconhecimentos, de papéis... e aí se começa a pensar em todos os papéis que tem dentro do MTG, as nomenclaturas para homens e para as mulheres, as várias idades, diferenças, os lugares de cada um, posteiro, agregado, peão... tem uma série de reconhecimentos e lugares que as pessoas disputam! Entram numa lógica de disputa para serem reconhecidas no meio, e o sistema tá sempre alimentando isso. Hoje são milhares de pessoas para quem o tradicionalismo é um modo de vida. Deixou de ser aquele lugar fora do reino da necessidade! Não! Há uma profissionalização, e são milhares de pessoas que dependem desse sistema!

Agora vamos mudar um pouco de assunto...quando você decidiu que faria jornalismo e história?
(silêncio) Pois é... deixa eu me lembrar que faz tanto tempo (risos). Eu comecei no jornalismo inicialmente escrevendo crônicas e tive um jornal. No meu primeiro jornal eu tinha 16 pra 17 anos.

Você era o dono do jornal?
Eu era o “diretor”, juntamente com outros colegas. Era um jornal que tinha uma origem num colégio religioso. Ele foi proibido no colégio (risos) por críticas de comportamento, obviamente; e esses estudantes, que eram um menino e três meninas, me procuraram para colocar o jornal fora da escola, e como a cidade não tinha jornal....

Qual cidade?
Era Capinzal. Eu estava passando umas férias na época (risos) e aí montamos o jornal. Eu fiquei na cidade jogando futebol, vôlei, trabalhando um certo tempo e esperando para ir servir (no exército).

Como chamava o jornal?
O Furo! E era uma época terrível, 1972! Houve uma tentativa de fazer alguma ligação com o jornal, por ser no oeste catarinense. Eu tinha ido de São Gabriel, na fronteira do Rio Grande do Sul, pra essa cidade, que era a cidade onde eu, concebido em carazinho, acabei nascendo quando o meu pai foi trabalhar num frigorífico lá. E eu voltei para Capinzal, fui numas férias, esperando, naquela dúvida que todo o pobre tem de que enquanto não passa a maioridade vai acabar servindo. Mas o jornal deu certo, eu fiquei na cidade, até ter um acidente violento fazendo uma matéria. Eu vendi a minha primeira matéria pro Correio do Povo e nós fomos fazer a matéria do “Trem Romeiro”, era um trem que descia do Paraná até Marcelino Ramos para a Romaria de Nossa Senhora da Salete. E as pessoas, principalmente os colonos, faziam promessas e não interessava se tinha lugar ou não, eles iam subindo no trem. E eu fui fazer essa matéria! Pegamos o trem eu e uma menina, ela era fotógrafa e tinha 16 anos e eu 17. Esse trem terminou saindo dos trilhos e bateu num cargueiro de frente...morreram várias pessoas no acidente, dezenas mutiladas, e eu não morri porque era um triatleta: eu era nadador, jogava futebol de campo, de salão, e era o treinador do time de vôlei da cidade (risos)... mas foi muito violento porque eu esmaguei as duas pernas, quebrei um pé, sete costelas, um braço e a mão!

Todos - Báááá...
E aí eu terminei indo a Santa Maria para me tratar do acidente, onde o meu irmão fazia medicina. E aí eu, praticamente mutilado, levei 4 anos pra me recuperar. Isso terminou minha história de atleta...o meu irmão trabalhava num grupo de teatro, que se chamava “Teatro Universitário Independente”, que de certa forma era igual a esse jornal... porque foi proibido pela reitoria (risos). Daí não podia ser mais “teatro universitário” e passou a ser “Teatro Universitário Independente”, o famoso TUI. E eu ia todo o dia fazer o “ponto”, porque eu não tinha o que fazer! Deixa eu só ir fechar as minhas janelas...

(Nesse momento começou a chover forte. Enquanto Tau fechava as janelas, nós três discutíamos se meus mp3 estavam gravando certinho e começamos a falar dos livros nas estantes...)

Hein Tau.... todos esses livros que tem aqui... tu leu tudo?
Sim.... a grande maioria! Alguns são de consulta... mas acho que eu li mais que isso! (Tau Golin tem um acervo de 12 mil livros, a maioria deles onde nós estávamos).

Geeeennte que chuva saliente....Continuando?
Sim! Então aí eu fui pra Santa Maria e além das minhas crônicas, eu acompanhando o cotidiano do teatro, comecei a fazer muita crônica de teatro, arte e cinema para os jornais locais, principalmente o jornal A Razão. Até que um dia - eu já começando a andar -, faltou um ator no grupo em uma peça infantil! E como eu sabia todos os textos de cor eu entrei em cena (risos)! A partir dali eu acabei trabalhando, entre outras coisas, uns 8 anos como ator, autor, diretor de teatro. Mas foi no teatro que eu, pesquisando pra escrever uma peça sobre as missões e Sepé Tiaraju, entrei mais na história, e obviamente, pelo meu próprio estilo, comecei a fazer crítica sobre aquela bibliografia que eu estava pesquisando para escrever uma peça de teatro que eu acabei nunca terminando, e no lugar da peça eu escrevi alguns livros sobre as Missões. A partir daí, até pra sustentar as polêmicas que iam surgindo, eu tinha que me debruçar sobre obras de história. A partir de então essas 4 coisas sempre andaram comigo, que é o esporte, artes, jornalismo e história. São 4 coisas que eu faço permanentemente, não tiro uma nem outra. Elas têm o mesmo peso.

Quando você falou do acidente, eu lembrei da história do Grêmio, que você foi centro-médio do Grêmio!
Eu comecei muito novo. Com 14 anos eu era triatleta, mas não tinha esse termo. Eu jogava futebol, nadava (tanto é que eu freqüentava o Tenisclube, como convidado, sendo vileiro, porque eu nadava pelo clube). E eu e outro amigo, nos domingos nós fazíamos apresentações no rio Vacacaí, com saltos mortais e coisas.... (risos) Isso no tempo de piá, com 12, 13 anos. E nós éramos assessores de um salva-vidas coxo e bêbado (mais risos), um ex-pescador que era contratado pela prefeitura da cidade no balneário do rio Vacacaí. O balneário era um taipão que fizeram no Vacacaí, na Vila Maria, e a única orientação que nós tínhamos era ir nadando, puxsnado uma câmera de caminhão, com uma corda, e ele (o salva-vidas da prefeitura) ficava na barranca... e a orientação era o seguinte: por via das dúvidas dá um soco na cabeça! Então eu peço desculpa pra todas as velhinhas que eu espanquei na minha infância no Balneário do Vacacaí (risos)!

E toda a minha família, em São Gabriel, são jogadores de futebol. Nós tínhamos o time campeão de futebol de salão da comunidade. Um dos times, o Independente, que é o time da Vila Capioti, é o time que, metade dele, era dos meus primos. Dali eu comecei a jogar até receber o convite de ir pro Grêmio. Eu tinha 16 anos e já jogava nos profissionais desde os 14. Aí eu tava naquela dúvida, fazendo teste, ficando por Porto Alegre, quando eu recebi o convite pra jogar futebol de salão em Santa Catarina, que na época era o grande celeiro e se pagava melhor. Então eu, arrimo de família, o mais velho, tinha perdido o pai com 12 anos, vi a oportunidade de ganhar uma grana e depois voltar ao campo, ser uma coisa momentânea. Mais tarde, quando eu morei em Porto Alegre, eu ingressei nos veteranos do Grêmio e joguei com várias pessoas do meu tempo, que eu fiquei naqueles meses....

Depois que tu sai do Grêmio vem a história de Capinzal?
Isso. Eu saí do Grêmio pra ir pra Capinzal.

Você já escreveu 38 livros. Quando foi a época que você sentiu necessidade de escrever tudo o que lia e estudava?
Eu tenho uma postura metodológica que é o seguinte: a gente escreve, em primeiro lugar, pra gente. Escrever é um exercício de reflexão. Por isso que eu tenho os dois pés, as duas mãos e o corpo inteiro atrás com quem escreve para os outros. O escritor sincero faz da escrita um exercício para entender o mundo e os fenômenos do mundo. É um estudar, é um exercício. Esse é o ponto de partida. E o segundo ponto de partida é de que o conhecimento é uma legítima disputa de interesse público! Não significa que tu queira fazer da sociedade a sua imagem e semelhança, mas tu tem que estabelecer, com os outros interlocutores da sociedade, um nível de debate para que a vida venha a ter sentido, sentido dessa sociedade, conhecer a sociedade, as relações com o passado. Então um historiador, um escritor, um cronista, em primeiro lugar ele não é um pregador, ele é um sujeito que busca fazer esse sentido de entendimento e de um questionamento profundo do sentido da vida e do indivíduo em sociedade. Tanto a sociedade, quanto o indivíduo, são partes de uma mesma reflexão, e entender isso já é uma grande coisa! Eu diria que fundamental!

E dentro dessa sua lógica de “escrever pra gente”, o que você acredita que já fez de melhor e qual o seu livro que você considera o mais representativo?
A gente sempre acha o mais importante aquele que ainda não escreveu. Eu tenho um hábito de não retornar ao que eu escrevi. E isso de certa forma é problemático. Porque às vezes você vai escrever sobre um tema que já escreveu há 10 anos e não consegue desenvolver a complexidade que tinha encontrado. Em outros momentos não, você vê que um determinado assunto que você enfrentou, numa determinada época, adquiriu outras complexidades, outros sentidos, se aprofundou mais e você precisa revisitá-lo. Então no meu modo de ver não existe texto definitivo. Por mais metodologicamente que eles estejam sustentados, eles são documentos de uma determinada época que têm a ver com a documentação disponível naquele tempo, a capacidade intelectual circunscrita naquele período, e por isso que você tem que sentir a necessidade de escrever; quando você tem preocupações culturais, históricas e tem momentos que quase sempre são determinados por específicas exigências sociais. Quando você vê que um fenômeno tem implicação direta na vida das pessoas, aí eu acho que esse é o momento do escritor entrar. O Tradicionalismo é isso! Me lembro do poeta Paulo Hecker Filho... ele tinha uma boa vontade demais com a minha capacidade intelectual. Ele me dizia “tu é um cara genial! Não perca tempo com essa grossura, com esses bombachudos, com essa bagualice! Não perca o teu tempo, tu pode dar muitas outras contribuições!”... e eu não respondia, porque eu fazia a leitura que o que essas pessoas fazem acaba influenciando a vida de milhares de pessoas. Então, eu que sou do interior, tive e de certa forma tenho uma vida campeira, conheço relativamente a história do Rio Grande do Sul, do Prata e da América, tenho uma determinada sensibilidade artística e humana, não é?!... E vejo um vazio intelectual muito grande nesse meio! Onde está em jogo a vida de milhares de pessoas, está em jogo a identidade do Rio Grande do Sul! Em grande parte a hegemonia tradicionalista, além de ser uma especulação com o popular, se deve a uma ojeriza que os intelectuais, que os acadêmicos tem em se dedicar a esses temas, o que é uma irresponsabilidade intelectual, porque nós terminamos tendo acadêmicos e intelectuais cujas idéias estão fora de lugar, mas eles estão mais fora de lugar ainda! Eles estão em outro espaço e é uma irresponsabilidade!

Qual é, na sua opinião, o maior “câncer” da academia?
É um conjunto de coisas, mas o problema da academia é achar que ela está acima de tudo e de todos e das coisas, que basta! Ela cria um ritual em si mesma, e um ritual das aparências, que é de um vazio, de uma hipocrisia impressionante! Tem instâncias universitárias que nunca abriram um livro meu, não sabem quantos livros eu escrevi, mas que discutem que eu vou pra universidade de sandália (risos)!... inclusive um bacharel, que se assina como doutor, chegou a comentar uma época que eu nem parecia um doutor porque eu andava de sandálias (risos)...

Todos - Ridículo!
Entende? Então esse é o ambiente das aparências que...

A fogueira das vaidades...
É... e ao lado tem muitos colegas que estão afim de produzir, que sabem que a academia é um lugar pra reflexão, um lugar pro saber! Eu, durante muito tempo, defendi que a academia é o último lugar da liberdade. Atualmente eu acho que é o último lugar da liberdade muito relativa! (risos)... porque os interesses nem sempre estão implícitos, então você termina construindo redes de reflexão, você olha pra todo esse patrimônio que eu tenho, de acervos, eu gostaria de estar compartilhando, num ambiente de alunos, com outros colegas! Mas não há a possibilidade disso, porque cada um cuida do seu e dos seus. Eu tenho uma biblioteca, entre aqui e em Porto Alegre, de praticamente 12 mil livros, com um acervo documental de 800 mil documentos e microfilmes e com um acervo particular! E isso é um absurdo! Não existe política de trabalho em rede, de gabinetes confortáveis e privados. Eu gostaria muito de trabalhar num ambiente em que se tivesse um espaço de trânsito de saber de pessoas e de segurança de acervo.

Hoje não há um descaso total por parte dos alunos, por exemplo? Ninguém tá nem ai?
Se não tem recepção tem que usar métodos jesuíticos! Ele vai ter que passar pelo conteúdo de qualquer forma. O problema é que o ponto de vista é de reflexão. A universidade não é só a sala de aula, é um lugar de se estar! De trocas! Portugal e Espanha fazem isso, um lugar de se “estar”, circular. Uma universidade não é ir na aula. É também ir na aula! Uma universidade é um lugar de trocas. Não dá pra ter uma visão de ir na aula e no máximo ir num barzinho... a grande maioria dos alunos hoje não conhece nem o prédio ao lado do lugar onde estuda!

Quer dizer, a universidade não pode ser um lugar que não tenha distinção com o cotidiano da cidade... ela tem que ser um espaço em que o sentido das coisas pulse! A função da universidade é de vanguarda, que tire a comunidade da mediocridade e puxe para uma outra atenção! É um lugar de dúvidas e tentativas de respostas.

Dá pra fazer um segundo tempo desta entrevista... eu tinha mais coisas pra perguntar...
Aham....

P.S - O Manifesto contra o MTG pode ser acessado aqui. Nos próximos dias estará disponível também no site www.osarmenios.com.br, inclusive para assinaturas ao encontro do Manifesto. Mas se você quiser ler o Manifesto e assiná-lo, pode interagir neste endereço: www.gauchismos.blogspot.com.



25.4.07

Los Hermanos entra em "recesso" por tempo indeterminado!

Desespero!
Com essa informação fiquei doente...
Olha o que está escrito na página inicial da melhor banda do Brasil (www.loshermanos.com.br):

"Recesso:
A banda Los Hermanos comunica a decisão de entrar em recesso por tempo indeterminado. Por conta disso não há previsão de lançamento de um novo disco.A pausa atende a necessidade dos integrantes de se dedicarem a outras atividades que vieram se acumulando ao longo desses dez anos de trabalho ininterrupto em conjunto. Não houve desentendimento ou discordância que tenha afetado nossa amizade tanto que continuamos jogando truco toda quinta-feira.Por conta dessa decisão, mesmo após o término da turnê do "4", resolvemos fazer duas únicas apresentações no Rio de Janeiro, na Fundição Progresso nos dias 8 e 9 de junho. Até lá."
Saiba mais clicando aqui!


Este blog está de "luto".

17.4.07

“Criatividade é o que me interessa”!

Leandro Dóro é como o gato do meu vizinho que se chama Iggy Pop: Simpático, gente boa e esperto. Sabe por que? Porque o cara é novo e já fez um “caminhão” de coisas. Chargista, cartunista, jornalista, já trabalhou em vários meios de comunicação. Como se não bastasse, mantém o blog http://leandrodoro.zip.net/, escreve contos e tem várias publicações, como o livro em conjunto “Edição de Risco” (Indicado ao prêmio Troféu HQMix 2007 , na categoria Humor Gráfico: "Publicação de charges e cartuns/cartoons") e a obra “A revolta dos Motoqueiros”. Dóro é um chargista e jornalista “lúcido”, que consegue falar do seu trabalho e também do alheio. Alia a teoria com a prática e não consegue controlar o negócio mais legal do mundo chamado “criatividade”.

Leandro Dóro, passofundense que mora em Porto Alegre, esteve na terra de Tarso de Castro no dia 04 de abril para mostrar seus desenhos e também para ministrar uma oficina. Leia abaixo a entrevista informal realizada com o multifacetado nos banquinhos de uma sala de aula, sob o olhar atento da mulher Betina e de alguns espectadores sentados nos bancos ao lado.

Como que tu começaste com essas idéias de desenhar, fazer cartoon, charge, que idade que tu tinhas quando começou?
Eu comecei trabalhando com desenho depois de uma cirurgia que eu fiz aos 10 anos de idade.
Uma série de cirurgias que me colocavam quatro meses por ano em casa. E eu comecei a desenhar através disso, porque eu lia muitas histórias em quadrinhos e muita literatura popular, coleção Vaga-Lume, quadrinhos Disney, enfim, o universo de cultura pop que seria comum pra época da minha infância e pré-adolescência. Depois disso eu comecei a desenvolver esse trabalho, dedicando umas 3, 4 horas por dia pro desenho. Mais tarde, passado o período da cirurgia, aos 16 anos, eu conheci alguns cartunistas e acabei tendo interesse pelo assunto. E aos 17 anos eu tive a oportunidade de trabalhar, logo após o “Fora Collor”, de 92, no jornal O Nacional, onde eu fiquei até os meus 21 anos. Lá eu era editor de um caderno infantil, fazia uma charge diária e eventualmente ilustrações. De vez em quando alguns projetos de tiras que, comercialmente, na negociação interna, não eram bem negociados. Após eu trabalhei junto a Universidade de Passo Fundo, no Museu Histórico Regional e no Museu de Artes Visuais Ruth Schneider. E, logo em seguida, no Diário da Manhã, como jornalista e desenvolvendo um projeto paralelo como cartunista. Com o tempo eu fui tentando resolver esse binômio, que na minha cabeça era um pouco difícil de dissociar, que é o desenho e a literatura. São as duas coisas que eu não consigo deixar de conviver; uma tem que ser paralelo a outra.

Tu defendes a implantação de disciplinas de desenho (ilustração, charge e caricatura) nas universidades de Jornalismo, postura que eu também defendo e acho importantíssimo. Qual o valor que tu atribuis ao desenho dentro do jornalismo?
A linguagem visual é importante pra compreensão do texto. A partir do momento em que tu utilizas como ferramentas o título e o subtítulo, o lead, a linha de apoio e a ilustração, tu consegues executar um conjunto que é de fácil compreensão e de fácil interpretação. E em especial a charge, como piada do dia, e o cartoon como sendo um humor atemporal, ele acaba te oferecendo uma rápida interpretação do texto que normalmente tu precisarias de um texto de 20 linhas ou 1.200 caracteres para ter a mesma compreensão. Da mesma forma a ilustração, que facilita a leitura e, dependendo do ilustrador, colabora com o pensamento abstrato. Qual o problema básico que nós temos? As universidades brasileiras privilegiam em especial o texto ao invés da imagem, fazendo com que o nosso raciocínio seja cada vez mais abstrato. Isso foi a defesa de uma tese de doutorado agora na USP, onde esse pensamento visual acaba sendo eliminado. E o pensamento visual aliado ao pensamento abstrato gera criatividade. E essa criatividade é o que me interessa! Ao mesmo tempo o interesse de – se for perguntar agora qual o interesse de criar essa cadeira – ela surgiu ano passado, em 2006, com uma discussão que houve junto a FENAJ – Federação Nacional dos Jornais, através do secretário geral (Celso Augusto) Schröeder, junto ao meu grupo de discussão que é “Grafias Sociais do Rio Grande do Sul”. O Sindicato dos Jornalistas defendeu que ilustradores deveriam ser formados em jornalismo. O que deu uma gritaria geral, porque o cartunista, ilustrador, enfim, ele tem as mais diversas origens: artes plásticas, autodidata, arquitetura, jornalismo, publicidade, enfim, existe uma gama de tarefas. Só que ao mesmo tempo esse pensamento abstrato faz com que eles não valorizem a ilustração. E por uma questão óbvia dá pra se compreender o seguinte: dos 300 anos de história da imprensa que nós temos... da ‘Imprensa’ de Gutenberg, já, digamos assim, tornada corriqueira, e nos 200 anos de imprensa do Brasil, de 1808 pra cá, nessa maior parte do tempo ainda a ilustração foi o uso principal. A popularização da fotografia só se deu do início do século 20 em diante. Então por que nós temos dois, três semestres de fotografia, e não temos um semestre de artes gráficas, ilustração, charge, cartoon? Compreender esse setor, não pra formar um cartunista dentro dos cursos de Comunicação e Designer – porque Designer deveria ser considerado um dos cursos relevantes da Comunicação Social, mas isso é uma outra discussão – mas porque isso dá um conhecimento visual e de como utilizar esse universo e essa gama que é a linguagem visual.

As histórias em quadrinhos se consolidam em uma das maiores manifestações populares. Por que tem muitos cartunistas que ainda não são valorizados financeiramente?
A maioria dos cartunistas tem valorização. Principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro. Só que em geral a valorização dessa área está relegada às grandes capitais. No interior é muito mais difícil, por isso eu valorizo muito quando surgem experiências satisfatórias no interior do estado, como o André Macedo em Pelotas, que faz um trabalho de animação muito interessante; em Santa Maria existem professores da Universidade Federal que mantêm o projeto “Santa Maria cheia de graça”, onde eles conseguem juntar cartunistas da região; em Rio Grande tem o Wagner Passos que faz um festival de humor anual...são pessoas que trabalham pelo cartoon e pelo humor. Quem sobrevive disso? Em Porto Alegre existem várias agências, tem a “Animatoons”, tem a “Cartunaria”, são grupos que vivem do cartoon, do humor e no geral eles trabalham para Assessorias de imprensa e para emissoras de TV, ou então prestam serviços para jornais e revistas. É uma gama de serviços que tu acabas prestando para iniciativa privada. Muitos sobrevivem disso, muitos prosperam com isso. Um dos últimos que teve uma alta prosperidade foi o André Lieves, que é um argentino e trabalhou em Porto Alegre, com um projeto onde ele reunia vários desenhistas novos. Ele formou todos eles e agora trabalha no Rio de Janeiro. Enfim, existe um mercado, existe um espaço, existe algo a ser cultivado. O que precisa é ter uma maior compreensão de como utilizar isso. Porque cada país tem a sua cultura visual diferente. Se tu fores ver a formação das histórias em quadrinhos, existem velocidades e atitudes diferentes sendo tomadas. Nos Estados Unidos, no Japão, na Europa e nos diversos países europeus existe uma maneira diferente de executar o mesmo trabalho. No Brasil a nossa cultura, como eu falei, ela é muito abstrata. Ela ainda não sabe valorizar a imagem da ilustração, do cartoon e da charge como sendo um instrumento comunicativo. Isso tem mudado nos últimos anos porque existe uma revalorização das histórias em quadrinhos devido a entrada delas nas livrarias.

Qual a tua opinião sobre as histórias em quadrinhos autobiográficas? Como por exemplo MAUS (Art Spigelmann) e PERSÉPOLIS (Marjane Satrapi)?
Muitos projetos são autobiográficos. As histórias em quadrinhos para adultos geralmente são autobiográficas, assim como a literatura é, em certo sentido, autobiográfica. É difícil fugir da autobiografia quando se trata de um tema humano complexo. No caso do Maus ele pega a questão judaica durante a Segunda Guerra Mundial, e Persépolis a questão da mulher iraniana. Em ambos os casos a autobiografia se torna essencial para compreender o universo onde ela (a história) está calcada. E os instrumentos narrativos que ela acaba utilizando explicam não só o momento histórico que a história está inserida, mas também a situação política, econômica. No entanto esse universo pode ser contado de uma maneira diferente. Não precisa ser de maneira autobiográfica. Vou utilizar como exemplo a literatura: “Os três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas. Ele compõe o universo dos personagens que narram o absolutismo. Uma das últimas etapas da consolidação do absolutismo na França, o que redundou na queda de Bastilha. Esse momento histórico é colocado... o absolutista é o cardeal, os mosqueteiros são os soldados da burguesia, que depois (a burguesia) toma o poder na queda da Bastilha, em 1789. Esses personagens têm uma função histórica e biográfica, que é específica do período. Tu não precisas ser essencialmente autobiográfico. Na lista dos 10 livros menos lidos do mundo, atualmente, dos não-ficção, a maioria dos que não são lidos são autobiografias. Por exemplo, a autobiografia do Bill Clinton é um dos livros mais comprados e menos lidos do mundo. E existem vários outros livros que têm essa mesma característica. Então as vezes a criação, quando se trata de autobiografia, eu sempre vejo com um pé atrás. Ela pode ser boa, ela pode ser interessante. Mas existem outras formas de contar a mesma situação.

Na tua opinião qual é o jornal brasileiro que sabe utilizar, hoje, a charge, a caricatura, a ilustração e até histórias em quadrinhos?
No Rio Grande do Sul, dentro dos jornais sindicais, é o jornal do Sinpro. Dentro dos jornais diários o Zero Hora, dentro dos jornais do Rio de Janeiro o Jornal do Brasil, e dos jornais de São Paulo a Folha de S.Paulo. O Jornal do Brasil teve uma experiência ótima com o Ziraldo, que ficou um ano e meio, dois anos; depois que ele terminou com o Pasquim 21. Fez um projeto maravilhoso, resgatou vários cartunistas da velha guarda, vários articulistas de humor do período do Pasquim. A Folha de S.Paulo teve uma lista muito boa de cartunistas, mas isso se reduziu. Mundialmente, tem o Le Monde na França. Na França existe uma grande valorização do cartoon no jornal diário. Em geral em cada página existe uma ilustração. Ela é necessária e superior a fotografia. Mas isso já é uma tradição muito antiga.

A Piauí, nova revista brasileira, sempre tem uma página inteira destinada aos quadrinhos. É uma iniciativa interessante?
Isso! Exatamente! E dentro dos que foram publicados o que mais me chama atenção nesse caso e que mais deve ser estudado é o Laerte, pelo trabalho que ele tem feito de literatura. Na verdade ele trabalha com mini-contos dentro do desenho. Ele trabalha situações filosóficas em 3, 4, 8, 10 quadros. E ele resolve problemas filosóficos. Vamos falar da teoria do conto rapidamente: Eu tô misturando literatura com desenho, porque o desenho é uma forma de narração.
Sendo uma forma de narração, ela não se dissocia de nenhuma outra forma narrativa, seja o cinema – porque as histórias em quadrinhos são um Story Board, na verdade existem produtoras norte-americanas de cinema que compram editoras de quadrinhos para produzir esse tipo de material, ou seja, eles testam roteiros primeiro em quadrinhos e depois eles tornam filmes – e a literatura e o desenho não são dissociados, porque ambos trabalham com imagens. A literatura trabalha com as “imagens” do texto e os quadrinhos com imagens puras, em si, aliadas ao texto. Dentro da teoria do conto tu tens o texto e o subtexto. O subtexto é aquilo que tu vais compreender sem necessariamente ter aquela informação explícita. Tu sabes que o mocinho não é tão bom assim no final por alguma coisa que tu pegaste e não sabe bem o que é. Aquilo é o sub-texto. E o Laerte domina muito bem isso. Ele domina aquilo que está por dentro. E ele faz isso em 3, em 2, em 1 quadro. Ou em 8, 10 ou 16. Acho que é o que a gente tem de maior expoente no momento.

Tu já expuseste em vários paises e agora está com esta exposição. Tu já pensaste em fazer algo itinerante? Quais são seus novos projetos?
Através de grupos eu já consegui expor em vários países. Mas essa pode se tornar uma exposição itinerante. Depende de convites. No momento eu tenho um projeto de montar algumas revistas e algumas publicações... explorar melhor a Internet, porque
a Internet é ainda uma grande dúvida econômica, ninguém sabe quando esse investimento que se chama “Internet” vai dar um retorno financeiro. Quando alguém vai se interessar em pagar 5 centavos que seja para ter acesso diário a um blog, ou um site. Então a Internet é um ótimo meio de difusão e um péssimo meio de retorno. Então eu pretendo continuar com essas experiências, mas esse é o grande questionamento dos jornais no mundo, porque a cada ano tem caído o número de leitores e o orçamento também tem caído. Ao mesmo tempo que aumenta o número de leitores pela Internet. Mas esses leitores não dão retorno financeiro. Esse problema tem que ser resolvido agora! Eu vou continuar produzindo pra Internet e vou tentar publicar livros e revistas. Tem um livro de contos e um livro infantil em conjunto que estou preparando para esse ano. O resto seja o que Deus quiser.

10.4.07

As histórias lúdicas e lúbricas de “João Gramático”

Conheci o professor de Jornalismo, da Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade de Passo Fundo, João Carlos Tiburski, em 2000, logo que entrei na faculdade de Jornalismo. Primeiro o achei meio esquisito, depois fui fazer estágio e ele era meu chefe. E assim se passaram quase oito anos, desenvolvemos uma verdadeira amizade e continuei convivendo com essa figura. Pra mim ele é folclórico: inteligentíssimo, culto, humilde, brincalhão e, as vezes, brabo. Muito brabo. O Tiba, como é conhecido, é, na verdade, o maior contador de histórias que já conheci na vida. A cada conversa que tenho, descubro uma coisa nova. Na entrevista de hoje, eu já sabia que ele alfabetizou 40 prostitutas, mas não sabia que ele alfabetizou, também, um “puto”, como ele mesmo disse. Eu também não sabia da história do estivador, nem da fazenda em Vacaria, nem do tal teço-teco. Pra saber, só lendo esta entrevista honesta e engraçada do cara que foi chamado pelos amigos da fazenda “Sítio Montes Claros” de “João Gramático”.


Como foi a tua infância?
(Dá uma tragada no famoso cachimbo) A infância? (dá uma tossida).... Bom eu nasci em Erechim e me criei em Cotegipe. Até os 8 ou 9 anos, nas terras dos meus avós, em Barão do Cotegipe. Trabal
hei na Colônia. Estudei lá e fui crismado lá.

Tu fizeste todas estas “paradas” de religião? Comunhão, Crisma, essas coisas?
Tudo! Polonês, né, com os avós poloneses, morando na colônia... e... então eu trabalhava na roça. Trabalhei até uns 9 anos na roça e depois fui a Erechim morar com meus pais. A minha infância mesmo foi com animais: vacas, porcos, tirando leite, e naquele tempo criança não usava chinelo. Tinha umas alpargatas e um chinelo de couro. Mas a gente não usava no dia-a-dia. Quando eu tinha 5 anos, eu lembr
o que a gente acordava, naqueles invernos antigos e rigorosos, quando a neve branqueava e congelava açudes, e eu ficava de pé no chão e de calça curta.

No inverno também?
Siiiim, piá não usava calça comprida. Nem calça comprida e nem bolso na camisa, que e
ra pra não fumar. E bolso era sinônimo de fumar. (acende de novo o cachimbo).

E Tiba, daí tu não usavas uns meiões para não passar o frio? Você ficava com as canelas de fora?
O que nos protegia é que quando a gente acordava de manhã, a avó, que falava muito pouco português, fazia um café passado preto, uns cafés mara
vilhosos, porque não existia nescafé, e passava o café preto. A gente tomava antes de sair pra buscar as vacas e guardar os terneiros, então antes de buscar as vacas e os terneiros, a gente tomava uma xícara de café preto bem quente com graspa. E aí não pegava gripe e nada. Porque meu avô fazia vinho e graspa, tinha alambique. E eu pisei em muito vinho.

Agora eu já descobri de onde vem essa tua paixão pelo álcool....
Siiimm..... essa paixão pelo vinho continua até hoje, muito vinho, pisando nos mastéis, lavava os pés bem
desencardido e ficava lá de calça curta e pisoteando, andando ao redor, dentro do mastel. Isso dos 4 anos até os 9. Nos dias de chuva a gente ia pro galpão, meu avô também fazia fumo em rolo. A gente ia escolher palha, as melhores palhas e também descascávamos os milhos. Então nos dias de chuva ficávamos no galpão, selecionando a palha do milho pro meu avô e pros tios fumarem, e trabalhando na ração para os porcos comerem. Mais tarde, na lavoura, andando muito, porque naquela época não existia trator, lavrei muito com boi e capinei com cavalo. A gente gastava e queimava a bunda de tanto andar à cavalo. Porque daí tinha que ir um pequeno. Os primos maiores iam na frente, tocando o arado.

Tu se criaste com os primos?
Tinha os primos, mas eu me criei com as primas.... muito namoro!

Aaaaahhhhhhhh!!!! “Tu pegou” muito tuas primas?
Minha iniciação foi com primas (risos). E foi nos galpões em cima dos milhos, ou então naqueles montes, sabe onde se colocavam os trigos? E eu tinha umas 5 primas. Então quando tu tirava o trigo, a gente botava uma haste de pinheiro e depois fazia as montanhas de palha de trigo. E ali a gent
e fazia cavernas e de noite era o bordelzinho campeiro com as primas... (risos)

Eu ia te pedir como foi tua adolescência, se tu havias “comido”, literalmente, muitas mulheres. Mas então tu começou mais cedo?

Sim. Eram brincadeiras de primo e prima. Isso com 7 anos.

Com 7 anos tu já bombava????
Já!!! (e acende o cachimbão de nov
o)
Tá, mas então conta um pouco da tua adolescência. Como foi?
Passei minha adolescência em Erechim. Na cidade. Naquele tempo tinha exame de admissão no ginásio, que era um tipo de pré-vestibular. Eu passei e entrei na Escola Técnica Salvador C
aruso MCdonald. Eu tinha turno integral. Tinha essas partes teóricas e de tarde eu fiz 4 anos de mecânica e desenho técnico. Na verdade eu tenho uma formação técnica. Trabalhei de mecânico na Unisul, na Autolândia, na fábrica de gaitas Marinel, trabalhei como padeiro... Isso tudo até uns 16 anos. Eu sai da Padaria Popular e como eu lia muito, já tinha lido os clássicos - eu tinha um irmão que fazia filosofia na UFRGS e ele me mandava livros e tal - eu sempre lia muito. Já tinha lido Balzac, Dostoievski, Nietzsche, e o Dom Quixote sempre foi o grande livro da minha vida. Então eu sempre lia muito e já escrevia. Inclusive ganhei concurso de redação pela Caixa (Econômica Federal), ganhei uma caderneta de poupança e um vôo de teço-teco pelo primeiro lugar (risos). Isso quando eu tava nesse ginásio técnico. Depois eu fiz o científico. Aí já trabalhava na livraria ABC, e eu cuidava dos livros e fazia todo o serviço, era motorista, viajava aqui pra Passo Fundo, e naquela época eu nem tinha carteira. Dirigia uma Kombi e vinha na famosa editora FTD, a gente vinha buscar cargas de livros e isso era num período de início de aula; toda semana tinha que vir buscar. Então eu me dedicava mais nessa parte de livros. Comprava os livros e lia e eu era o cara que mais entendia de livros na livraria. Os escritores e as pessoas que liam – eu convivi muito, uns dois anos, quase três, com o escritor Gladistone Osório Mársico que era nosso freguês, também o Carlos Nejar. Naquele tempo ele era promotor em Erechim. Vendi muito livro pro Carlos Nejar. E a gente conversava.

Cheguei a ter um programa na rádio de Erechim, um programa que eu fazia, sobre livros. E assim como hoje eu vou semanalmente pro Capingüi, naquela época eu ia semanalmente pra Cotegipe. Meus avós tinham um pequeno moinho, de milho e trigo. Até hoje tem em Cotegipe o famoso balneário dos Males, que a minha mãe era de sobrenome Males. Meus avós descendentes de pais eram poloneses. E eu ajudei a construir todos aqueles açudes com pedras. A gente ia pra lavoura com os carroções, e na volta trazíamos as pedras. E nos fins de semana a gente fez uma “muralha da china”, que é um açude imenso com pedras ao redor. Isso eu ajudei a fazer na minha adolescência. Ás vezes eu ia pra Cotegipe até a pé, porque não tinha dinheiro. Eu ia visitar a família e ainda não tinha bicicleta. Ia a pé de Erechim pra Cotegipe. Dá 9 quilômetros pra ir e 9 pra voltar. Com chuva ou sem chuva.

Quando tu saíste de Erechim?
Saí em 1968 de Erechim. Eu tinha feito 18 anos. Saí e fui fazer vestibular em Porto Alegre. Eu tinha que ir servir também (no exérc
ito). Mas eu não queria servir e não servi. Eu mandei uma carta para o Enaudy Troglio da livraria, que conhecia um capitão e tal. Aí eu não servi, fiz vestibular, e o primeiro que eu fiz foi pra Sociologia. Em 1968, bem naquela fase violenta, né. Isso em Porto Alegre. Passei no vestibular, mas deu um monte de problemas e muita gente fugiu.

Por problema político.
É. E eu morava na famosa casa dos estudantes, ali na Riachuelo com a Borges, a Aparício Cora de Almeida. Morei anos lá (depois que eu voltei). Foi a casa mais famosa de lá, tem muitas histórias. D
á 10 dedos de histórias loucas e de loucos. Teve de tudo naquela casa. Aí eu estudei uns 3 meses antes de sair. Mas antes eu trabalhei de estivador. Porque eu era grande e forte e camponês, então arrumei um emprego em Porto Alegre – porque morar nessa casa era só pra gente bem pobre – e trabalhei uns meses no porto do Guaíba, coqueando farelo, sal, descendo pelas rampas. Era uma fila de gente trabalhando, que carregava e descarregava do navio com tudo na cabeça. Ali eu fiquei uns 3 meses, até passar no concurso do Banco Nacional. Fiquei um tempo no banco trabalhando. Mas isso de estivador foi logo com 18 anos. Mas aí com a confusão de 68 cada um foi pra um lado e eu fui pra Vacaria. Eu ia pra São Paulo, mas aí tinha um amigo meu Eodóxo Teodoro dos Santos, que fazia arquitetura, e ele disse “Tiburski, por que tu não fica aqui perto? Vai a Vacaria que o meu tio...” Porque o Cesóstres Campos (o tio do amigo) era médico e dono de tabelionato. O pai do Cesóstres tinha sido dono e passou pra ele. E o Cesóstres não exercia a medicina porque o tabelionato dava mais. E (tosse) daí eu fui pra lá, numa fazenda, só que chamavam de “Sítio Montes Claros”. Que fica bem na frente do famoso rodeio crioulo de Vacaria. Ali tem duas grandes fazendas, a “Montes Claros” e a “Firmino Branco”. Ali eu fiquei 2 anos. Saí de Porto Alegre porque a perseguição era muito grande, principalmente na Aparício Cora de Almeida.

Tu chegaste a se envolver diretamente com a ditadura (com militância)?
Eu fiquei pouco ali em porto Alegre e larguei. E outros largaram também. Eu participei muito em Erechim. Participei no primeiro e no segundo
grau do Grêmio Estudantil.

E na fazenda que eu fui (ao sair de Porto Alegre) só morava uma velhinha bugra chamada “Nhá Bandina” e a filha dela Rosa, que tinha uns 14 anos e moravam só as duas, com o cunhado do Cesóstres, que era viúvo. Aí como o nome dele era João também, começaram a me chamar de “João Gramático” e ele era o “João Prático”. Eu fiquei lá administrando e tirando leite, e administrando e levando o leite de carrocinha nos dias que estavam bons. Distribuía em restaurantes, na Madel, na saída de Vacaria, antes da Polícia Federal e levava e trazia as coisas. Quando o tempo tava muito ruim eu ia de Kombi. E o Cesóstres teve uma biblioteca muito grande, que era do pai dele. Eu organizei tudo, tava tudo abandonado, encaixotado. Eu arrumei tudo e fiz uma baita biblioteca lá fora. Aí as vezes eu ia viajar de Kombi, registrar em cartório, pegar papéis nos tabelionatos. E é ali que eu tenho uma experiência fantástica como professor. Não foi na UFRGS, nem na UPF, nem na Unijuí, que eu trabalhei, mas foi lá que tive esta experiência (tosse característica). Um tal de pastor Ernani – naquele tempo foi lançado o Mobral – e o pastor Ernani que queria caçar em Montes Claros – ele era pastor e trabalhava na Polícia Federal – e um dia ele disse “João Gramático, tu não quer participar de um projeto?” eu disse “qual é o projeto?” “O projeto é alfabetizar as prostitutas da zona do meretrício de Vacaria na saída pra Lagoa”. Eu disse “Topo”. E ele disse “A polícia te pega aqui” – porque a polícia era na frente, numa estrada de chão – então ele falou “a polícia te pega e às 5 e meia te deixa aqui”. E eu trabalhei um ano. Alfabetizei 40 prostitutas e um puto, o famoso Julinho. Que ainda esses dias eu soube que tá vivo. Deve estar muito velho, porque eu tinha 19 anos, ia fazer 20....(hoje o Jacaré tem 58). E aí eu volto a Porto Alegre. Volto e entrei em Letras.

Mudou de idéia?
Mudei de idéia! Por causa da Literatura, né. Aí fiz Letras e Jornalismo. E depois o Mestrado eu fiz na UFRGS.

Em quais jornais tu trabalhaste?
Eu trabalhei no Correio (do povo) com o Gastal, no segundo caderno, que era suplemento cultural. Era o caderno de sábado...

Mas logo que tu entraste na faculdade começaste a trabalhar em jornal?
Não... é que eu escrevia. E naquele tempo quem mais trabalhava nessa área eram alunos de Letras. E eu escrevia regularmente no Correio e eles publicavam. E lá eu trabalhei com o Quintana, no “caderno H”, com o Jaime Cobstein no “Letras e livros”. Ele foi meu editor.


(acende o cachimbo de novo e tosse).


E trabalhei também com
o resenhista, eu e o (Sérgio) Capparelli, lá no Coojornal. Lá eu trabalhava e fazia parte do “Leitura” (editoria), que eram as últimas páginas do jornal. E éramos remunerados pra isso.


E tem o Pasquim aqui do Sul!
Sim, trabalhei no Pasquim Sul (tosse), com o Carlos Feio, foi ele que me colocou pra escrever. E o Carlos Feio era um português de Portugal, acho que tá vivo ainda (tosse - pigarro). E depois eu abri meu escritório de produção gráfica.
Aí eu já tava divorciado.

Quantas vezes tu foste casado?
Casado, casado n
o papel, uma. Namoro eu não sei quantos, isso não dá pra contar. E de morar junto eu morei com essa que eu casei, depois com a Dêla – que eu tenho uma filha registrada, que é a Júlia, mora em Cruz Alta – e no primeiro casamento, com a Maria Luisa eu tenho 3 filhos. Depois eu vivi seis anos com a Nara Trindade, que se tornou minha sócia – nós abrimos juntos o escritório e depois nos separamos. Era T&T, Trindade & Tiburski. Depois que ela saiu eu e os meus filhos botamos Tiburski & Tiburski. E com os meus filhos a gente fez muito jornal. Criamos o jornal “A Fonte”, de Santo Antônio da Patrulha, que era semanal. O Tibinha, que é o mais velho dos meus filhos foi administrar lá. “A Fonte” por causa da famosa fonte imperial que tem lá, né. Lá trabalhou comigo e se iniciou o Miguelito Medeiros. Ele aprendeu comigo. Acho que hoje tá na Gaúcha. Grande repórter! (dá uma grande tossida). Daí em Porto Alegre eu também trabalhei como editor de livros do IEL (Instituto Estadual do Livro). Até há pouco tempo. Eu tenho muitos livros do estado, pelo MARGS (Museu de Artes do Rio Grande do Sul) e pelo Museu de Comunicação. Entrei no Estado em 02 de agosto de 1972. Agora dia 02 de agosto eu faço 35 anos de concursado.

Ai que maravilha!!!
Agora eu pretendo me aposentar. Tô com 58...

Será que vão abrir concurso?

(risos)...

Continuando...
...Daí com o Carlos Appel – eles t
inham o tradicional cursinho universitário que era o Unificado, dos irmãos Gonçalves, o Sérgio e o outro, e lá tinha os melhores cursos. E eu criei um jornal pra eles. Fiz o “Terceira Margem”, que foi um jornal que marcou uma época. E um dia o CPERGS faz uma greve e nós publicamos – e nós só publicávamos jornal com opinião. Chamávamos de jornal de “contra-mídia”, no sentido exatamente da idéia do ombudsman, de fazer uma “crítica da mídia”. Esse era o projeto. Eu era dono do jornal, mas ele era bancado pelo Unificado, e era basicamente distribuído para os alunos – e nós publicamos uma matéria contra o CPERGS, assinado não sei por quem, um cara muito louco, e o CPERGS foi pra cima do Universitário e aí eles romperam o contrato com a gente. Eu fiquei com o jornal mais uns dois anos, com banca e assinatura, ali na Praça da Alfândega, no edifício do Relógio. Lá nós tínhamos 3 salas. E éramos os únicos que tínhamos banheiro interno. Os outros até hoje tem banheiro no corredor. E ali eu dormia, nos tempos que eu tava divorciado, separado, não tava morando com mulher ou mesmo virando noite trabalhando, aí eu dormia ali mesmo, no sofá, tinha geladeira, tinha tudo, fogãozinho a gás. Uma redação em casa. Quando eu perdia a mulher eu ia pra redação. (risos)

E como foi aquela história que uma vez tu saiu bravo com uma mulher, por causa de um tamanco, e aí tu derrubou uma carrocinha de Cachorro-quente?
Ah..... ah, essa... tu vê como é a memória né, o
inconsciente. Uma das mulheres que eu vi mais tempo depois foi a Niza (que era a quarta mulher). Ela foi minha aluna.

Foi a quarta?
Sim, porque eu me separei da Nara pra ficar com ela. Ela foi minha aluna na Unijuí. Ela era casada e novinha. Eu dava aula de Literatura Hispano-americana, entre outras matérias – eu nem dava jornalismo ainda porque não tinha. Naquela época era FIDENE (o nome da universidade), que os caras chamavam de FUDENE (risos). Tinham os bailões lá na sede antiga, e enchia de viajantes e caçavam as mulheres. E elas iam... Então saiam pros motéis. Por isso era a famosa FUDENE (risos). Daí eu fiquei quase 8 anos com a Niza (a Niza se separou do marido para ficar com o Tiba). E ela tem uma
filha do primeiro casamento, a Gerusa, que se criou com a gente. Inclusive quando eu vim mostrar o currículo pra Sônia aqui em Passo Fundo - eu já dava aula na UFRGS – a Niza veio junto. E aí também tem o Jornal de Nova Brécia que eu criei. Eu ainda sou o editor, ainda assino. Fiquei uns 10 anos no jornal de Nova Brécia, e aí vendi pra uma funcionária que fez jornalismo.

(luta para acender o cachimbo)

Então... no dia que eu vim a Niza veio junto. Só que nossa relação... ela era 16, 17 anos mais nova do que eu; e ela alegava sempre que tinha muitos problemas de tensão pré-menstrual. Então uma vez por mês, por uma semana, era uma loucura, sempre, sempre!

(luta de novo com o isqueiro para acender o cachimbo).

E eu comecei a trabalhar em Passo Fundo e ela enlouquecia. Aí eu ficava aqui, vinha domingo de noite e saía quinta às 02 da manhã. Chegava lá e trabalhava quinta, sexta e sábado de manhã na URGS e no IEL. Depois ia pro sítio em Butiá e domingo de noite pegava o ônibus e voltava pra Passo Fundo. Chegava aqui à meia noite e ia direto pro Boka comer e tomar trago. Morei quase 3 anos no Da Vinci, que ficava do lado do Boka. Aí voltava pra lá e sempre tinha briga e ciúmes e tal e no fim, depois que eu comecei a vir pra Passo Fundo a coisa piorou, piorou e a gente se separou duas vezes. Eu saí do apartamento e deixei tudo. Saí só com minhas roupas e livros. Aí eu já tava separado e a gente se encontrava e tal (acende o cachimbo) e eu morava na Demétrio – porque o escritório era ali na Bento Martins – e um sábado de tarde nós estávamos brigados e tal, e ela me ligou pra ir lá. Eu já tinha tomado uns tragos fortes, e andava sempre de regata, bermuda e chinelo. Ela morava na Riachuelo, há umas três quadras. Cheguei lá, ela queria que eu largasse o apartamento e voltasse a morar com ela. Ali na Riachuelo perto da Biblioteca... Eu trabalhei na Biblioteca também.

Ah é? Na biblioteca pública?
Na biblioteca pública! Trabalhei lá no setor dos jornais embaixo. Trabalhava só no sábado e domingo.

Que maravilha!
Teve um período que eu saí do IEL e fui pra Biblioteca pra poder atender esses outros negóci
os. Um dia uma poeta que era minha amante, ...a gente transava lá embaixo, e ela me esquece a calcinha pendurada!

Eu não acredito!!! (risos)
Na segunda-feira a diretora me chama! Bá, deu um estouro aquilo lá! Porque quem tava lá era eu, né. Mas eu já escolhi a
quele lugar porque é o setor mais lúdico, mais lúgubre, é o mundo de Dostoievski.

Um submundo!
Um submundo (confirmando com ênfase!) lá embaixo! E eu gostava e ficava ali. E o pessoal não podia entrar. Então só entravam as minhas gatas... Mas aí a história da Niza... Ela queria que eu morasse lá e eu disse “não, não vai dar”. Era a terceira vez que eu me separava e ia alugar apartamento. Aí ela tava eu acho naquela semana fatídica. E ela me arranhava. Eu sempre vinha arranhado pra UPF. Sempre! Eu não me lembro se tu pegou essa época?

Acho que te conheci quando tu estava se separando.
É... Então eu vivia arranhado. Mas eu nunca bati nela. Só me defendia (acende o cachimbo). E ela começou a discutir, discutir, eu disse “ó, tô indo embora, tô voltando pra casa”. E eu fumava cinco carteiras de Hollywood por dia, mais o cachimbo. Fumava tipo louco. E eu fui sair...

Com quantos anos tu começou a fumar?
Ah, com uns 7, 8 anos fumava os palheiros do vô, já. E depois continuei (risos). Aí fui sai
ndo da casa – e eu tinha as chaves, né; ela tinha as chaves do meu apartamento e eu tinha as chaves do dela – e eu vou saindo e ela se agarra em mim e eu disse “me larga, eu vou embora, eu não vou passar por tudo que já passei”. E ela tinha um sapato forte, um baita dum salto e ela pegou aquele salto e me acertou em cheio (coloca a mão no lado direito da face). Preteou! Aí eu me virei e dei um tapão (ele nunca tinha batido em ninguém. A raiva o “possuiu”). Literalmente ela voou. Ela era “mignonzinha” e ela voou, assim, Chiiiiiii (imita o barulho de avião). Foi a primeira vez que eu vi uma mulher voando (risos). E aquele sapato eu peguei e fui embora com o sapato. E quando eu tô voltando pra casa com o sapato, saí na Borges, passei por baixo do viaduto e depois tem ainda hoje aquelas carrocinhas de cachorro-quente. E eu vinha fumando, mas brabo! Com o rosto inchado. E brabo! E tava no trago, né. E veio um negrão, e nós estávamos bem na esquina, e eu estava fumando. Ele disse “Me dá um cigarro”. Eu disse “Não, eu não fumo”. Mas eu tava fumando! E o cara quis me botar a mão – e ele também tava bêbado – era um baita homem e eu peguei com as duas mãos e empurrei ele. Ele saiu tropeçando e caiu por cima da carrocinha. Virou tudo! Aqueles molhos, lingüiça, pão (pigarreia), bom eu conhecia o dono, porque passava sempre ali, vivia pelos botecos, conhecia tudo, fazia toda a via-sacra. Aquilo era tudo comigo. E o cara virou tudo aquilo. Nossa Senhora! Naquele tempo acho que eu paguei 600 reais pro cara. Quebrou os vidros naquelas carrocinhas de alumínio. E eu com o sapato. Cheguei em casa com o sapato. E depois quando eu me mudei pra Passo Fundo em definitivo, eu levei todas as minhas coisas para o sítio em Butiá. E levei o sapato. Ele ficou uns 5 anos pendurado na minha biblioteca. Agora na última viagem que eu fui lá – eu já fui 4, 5 vezes com a Lurdes, minha atual mulher – e a Lurdes sempre invocada com o sapato. Aí ela disse “Tiburski, eu duvido que tu queime esse sapato”! E eu peguei, então, nessa última viagem, eu peguei e queimei o sapato.

Simbólico, hein?
Simbólico. Eu disse “Já que tu quer que eu queime, eu queimo”.

Bom, agora mudando de assunto, mas na verdade repassando um pouco do que tu já falou, o que, de fato, de fez cursar Jornalismo? O que te fez virar jornalista?
É assim, ó: eu já escrevia no jornal sem ter entrado no curso de Jornalismo. Aí começou a discussão de que teria que ter diploma. Isso é uma coisa muito antiga. E aí como eu era aluno da UFRGS, eu pedi reingresso e entrei no jornalismo. Mas eu fui fazendo a longo prazo, porque eu não tinha tempo, e eu trabalhava e tal. Não lembro quantos anos foram, mas levei tempo. Eu trabalhava e escrevia e com essa exigência nacional, e como era uma área que eu sempre praticava e escrevia, eu entrei pro jornalismo. Embora minha formação mesmo seja outra. Minha especialização é em Sociologia Cultura e Política da América Latina, pela UFRGS e Mestrado em Literatura, também pela UFRGS.

E o que tu pensas da qualidade do jornalismo atualmente?
Eu acho que ... (pensa) a qualidade é inferior em termos de idéias e textos (referindo-se à antigamente). Pela qualidade das universidades, pela Internet, que o aluno não lê mais, é leitura mínima, tudo ele vai buscar na Internet, já mastigado e digerido por alguém, então ele não lê, não reflete. E o jornalista é um articulador. E conhecimento é articulação. Quer dizer, não adianta saber uma coisa e não articular as duas. Na verdade a essência do jorn
alista é ser um articulista. Por isso que esse jornalismo informativo, burocrático, o que eu chamo, como o Barthes, de “escreventes”, aqueles caras que diariamente são obrigados a escrever alguma coisa, como quem trabalha em cartório, é ser burocrático. E o jornalismo hoje é uma ejaculação precoce. É ou não é? Tu pega lê o lead, por exemplo o Correio do Povo que tem lead, lead, lead. Mas o porquê? O grande problema do jornalismo atual é a falta da investigação, da interpretação e da opinião. E antigamente tinha crítica nos jornais, tinha polêmica – e hoje só tem laudação e louvação e puxação de saco e compadrismo, se tu escreve um livro que é uma bosta tu sempre encontra um jornalista ou alguém que vai falar bem, vai escrever na orelha... aliás como toda a cultura e a sociedade. Em termos de densidade e da pós-modernidade, “nada é sólido e tudo se desmancha no ar” (fazendo alusão ao livro de Marshall Bermann). Essa que é a verdade. Não há profundidade. E não há mais tempo também... são tantos os papéis e tantos os bares e tantas as festas que os alunos tem que ir... e tanto trago e tanta maconha e tanta coisa que na verdade não sobra muito tempo pra ler, né. Porque essa coisa de ficar...O Cassiano Del Ré (Professor da FAC) agora deletou 165 páginas de e-mail que me mandaram nesses três anos, e eu não li nenhum. Acho que posso entrar no Guinnes Book. Eu não sei quantos quilos dava de e-mail. Quando deletou o computador parecia que ia levitar (risos).

E essa história de chamar todo mundo de “ô Jacaré” veio com o teu amigo Sérgio Metz, né? Que tinha o apelido de Jacaré.
O Sérgio Metz (acende o cachimbo) e eu saíamos e íamos pro Bar do Beto (em Porto Alegre) e ficávamos conversa
ndo. Ele era músico do Tambo do Bando e compositor e fez uma bela novela que eu fiz a revisão chamada “Assim na Terra”. Ele trabalhava na Zero Hora e a gente se encontrava no antigo Bar do Beto que era mais famoso. Lá na Venâncio. Lá iam todos os intelectuais e políticos e estrangeiros... lá era o grande point em Porto Alegre. Falando de literatura e de jornalismo e tomando todas. E duas horas da manhã sempre ficavam as mulheres mais feias e mais velhas. E elas ficavam ali e começavam a nos olhar e mandar bilhetinhos. Até que um dia ele criou a famosa frase. Disse: “Tiburski, vamos embora porque a coisa é feia e vem se debruçando” (risos). Essa frase era do Jacaré. E daí que eu comecei a chamar as pessoas que eu gostava de “Jacaré”... “E daí Jacaré”, em homenagem ao Sérgio Metz. E aí ficou “jacaré”, “jacaré”, “jacaré”. E agora os meus dois barcos que eu criei vão se chamar de “Jacaré One” – o Luis Hoffman que está fazendo a arte – Se o Bush tem o “Força one”, então eu também posso ter o “jacaré one”. Vou colocar nos carros, nos dois barcos e na cabana. Em homenagem ao jacaré.

Quanto tu começou o teu amor incondicional pelo álcool?
Começou no que eu contei no início da entrevista. Quando eu te disse que minha vó botava o café preto com graspa. Só que mais tarde eu comecei a alterar, menos café e mais graspa. No final era graspa com um pouquinho de café. E depois nos dias de inverno e nos dias de chuva, o meu avô tinha uns porões enormes (...), feitos de madeira, e tinham aquelas pipas enormes, de 6, 7 metros de altura...e queijos e salames...

E tu se deitava lá e mandava ver...
Sim tinha muito queijo e salame pendurado. E aí nos dias de frio tinha os pelegos, eu botava debaixo da pipa, pegava um pedaço de queijo e de salame e deitava lá e abria a torneirinha direto (risos). Aí que começou tudo. E não existe polonês que não goste.

E hoje, o que tu gosta de fazer, em termos de diversão?
Hoje eu sou um cara que vivo num mosteiro. Eu vivo, de lazer, no Capingüi (lugar paradisíaco de Passo Fundo, com muitas barracas feitas de lona). Vou na sexta e volto no domingo. E tô vendendo minhas terras em Butiá, e vou comprar aqui, e quero me aposentar, trabalhar até os 60 e voltar pro campo onde eu nasci, onde eu tive meus melhores momentos... e tenho terras e cavalos hà 40 anos. E vo
u voltar porque eu só tenho uma vida e não vou gastá-la aqui. Isso é uma decisão de qualidade de vida. E foi uma descoberta de um paraíso dentro do inferno. Porque o Brasil é um inferno e o Capingüi um paraíso. Gosto de velejar, remar, pescar - mas não sou pescador assim de ficar (tempo demais atrás da “pescaria”) – eu gosto de armar os molinetes, e beber muito, falar com os amigos, churrasquerar.

E pra terminar, o filme, o disco e o livro da tua vida.
O disco é o do Bob Dylan, que tem Blow in the Wind... “A resposta está no vento”.... O livro é Dom Quixote e a Bíblia. Eu não leio a Bíblia, mas já li bastante. Só católico mas só entro na igreja quando tá chovendo muito e a porta tá aberta. Mas o livro é sem dúvida Dom Quixote. Na verdade a gente tem que aprender a ler cada vez menos e reler alguns livros. Reler, reler, reler. Ir mergulhando num lugar só. E o filme vou falar um dos últimos que me impressionou e que eu ganhei por fumar um cigarro atrás do outro...
ganhei do Eduardo Wanmacher, que é “O homem que não estava lá”. Esse filme é fantástico. O diálogo e a fotografia é fantástica. E tem sempre dois momentos que eu cito, uma é “um dia todos vão ao barbeiro”. E a outra é “Eu não falo muito, eu sou apenas o barbeiro” (O Tiba conta que o Dudu Wanmacher sempre chegava “recitando” o trecho do filme em inglês). De uma simplicidade e de uma sabedoria, é pra matar. Foram muitos filmes, mas esse é um filme que me marca atualmente.

Entrevista: Roberta Scheibe
Fotos: Cláudio Tavares